O modelo da entrevista ao vivo

O modelo da entrevista ao vivo

 

Esta semana voltamos a ver entrevistas ao vivo de candidatos à Presidência da República, uma inovação que foi importante nas eleições gerais de 2010, e cuja função era complementar os dois modelos mais comuns de discussão com candidatos nos meios de comunicação, que são o debate horizontal entre os políticos mediado por jornalistas e a entrevista com cortes e edição posterior. Naquele ano, todos os telejornais de rede nacional da Globo entrevistaram os candidatos que pontuavam nas pesquisas em um modelo de entrevista direta “sem edições nem cortes”, como diziam as chamadas da emissora, e, naturalmente, sem que os entrevistados soubessem antecipadamente que pergunta lhes seriam feitas.

O modelo não prosperou depois de 2010. A política se sentiu encurralada, constrangida, em um padrão que dava poder demais aos âncoras e atava as mãos dhos candidatos. Na competição entre jornalistas e candidatos, os primeiros fatalmente ganhavam. Repetiu-se ainda em 2012, mas já não se manteve como espaço político central em 2014 e 2018.

Uma das razões pelas quais o modelo saiu de cena é que era muito hostil para os políticos. A bancada se transformava em uma arena, as perguntas e respostas se transformavam em armas com que duelavam âncoras e candidatos. O jornalismo exibia a sua independência da política adotando uma atitude de suspeita, de desmascaramento do valor de face do que o candidato dizia, e de superioridade e altivez diante do mundo inferior e manipulador da política. Cabia ao político tentar demonstrar sua capacidade de esquiva e contra-ataque. No fim, ninguém ficava satisfeito, pelo menos não o espectador que queria questões e respostas substantivas, ao contrário dos partidários que usavam esses episódios para mostrar a virilidade do seu candidato ou como ele sofreu na garra dos âncoras de empresas de jornalismo tão parciais contra o seu lado.

Escrevi em 2012 um artigo científico descrevendo em pormenor o modelo como foi aplicado na eleição de 2010.

Neste ano, talvez em decorrência da enorme relutância dos políticos mais competitivos em aceitar o debate entre candidatos, o modelo reaparece, repaginado. Com apenas quatro candidatos, um tempo maior de entrevista, uma abordagem menos antagônica por parte dos jornalistas e, ao que parece, pelo menos na Globo, apenas no Jornal Nacional.

A reabilitação do modelo em 2022 ainda traz consigo certos padrões antigos dos temas e modelos argumentativos empregados pelos jornalistas. Tematicamente, as questões sobre promessas falsas ou irrealizáveis ainda se mantêm, assim como indagações sobre desempenhos ruins do governo. Mas houve mais questões substantivas, sobre projetos e problemas. Do ponto de vista argumentativo, o modelo de confronto (te pego numa contradição, eis a sua incoerência ou você acha que comportar-se assim é certo?) se mantém como especialidade da casa, mas a hostilidade não se transformou em acossamento e no exercício do poder de mandar parar de falar.

DENTRO DESSE QUADRO, COMO SE SAÍRAM OS PRINCIPAIS CANDIDATOS?

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Quando escrevo esta coluna, Simone Tebet ainda não foi entrevistada, eis a razão pela qual não será mencionada.

Mas no caso de Bolsonaro é simples: não havia jeito de ele se sair mal na entrevista ao Jornal Nacional por mais hostil que fosse o comportamento dos âncoras e por mais que contradições e comportamentos inapropriados do candidato fossem exibidos. O seguidor de Bolsonaro espera lacradas, o contra-ataque duro e rápido que desarma o adversário e o impede de continuar, não uma formulação consistente, verdadeira e leal de respostas a perguntas sinceras e substantivas. Chamar os entrevistadores de mentirosos e denominar a pergunta incômoda de fake news, comportamento efetivamente adotado, faz parte do que os seus esperam e aplaudem. Se a pergunta te deixa mal, negue, desqualifique o entrevistador, a emissora, diga que pior é o seu adversário e, sobretudo, nunca, em hipótese alguma, admita que errou ou que errará. Ponto.

Para os seus seguidores, o importante da entrevista ao Jornal Nacional era ser macho o suficiente para ir nela, aguentar o tranco e devolver na mesma moeda. Sustentar a imagem de macho clássico é mais importante para Bolsonaro do que qualquer outra coisa que seja dita sobre ele, exceto perguntas sobre rachadinhas e os desmandos de seus filhos, que geralmente tiram-no do prumo, e que foram, talvez não por acaso, deixadas de lado.

No dia seguinte, o gabinete do ódio e o antibolsonarismo fizeram as suas edições. Cada um escolheu os planos que reforçavam a sua tese. Afinal, para que serve hoje um programa de televisão a não ser para ser desmontado, decomposto em dezenas de vídeos de 30 segundos a serem entregues aos usuários de mídias sociais?

Vendo a entrevista, e o vazio das respostas, duas coisas me ocorreram: quanto ódio ao PT foi necessário para que alguém escolhesse uma pessoa dessas para presidente da República? Há de ter sido um oceano de raiva e desprezo, posto que o homem não tem um fiapo de humanidade, um farelo de inteligência (não confundir com esperteza, que ele tem demais), uma migalha de caráter.

Além disso, demonstrou-se que o método do Jornal Nacional, que consiste em apertar o político, mostrando suas contradições, o seu mau comportamento e os desastres passados que ele protagonizou, não funciona em alguém como Bolsonaro. É impossível apertar um entrevistado para quem mentir é natural, assim como é natural não ter qualquer embaraço de acusar o entrevistador de mentiroso mesmo sabendo não ser verdade. A pessoa precisa ter alguma consciência moral para se sentir constrangida ao ser confrontada com suas contradições, crimes, malfeitos e pecados. Quando o sujeito é amoral, nada o constrange ou envergonha.

A entrevista de Ciro Gomes, no dia seguinte, só poderia ser melhor que a de Bolsonaro, claro. Qualquer coisa depois da indigência intelectual e moral do presidente seria um alívio. E foi. Ver três pessoas inteligentes discutindo de modo civilizado e cortês os grandes problemas nacionais virou um luxo só.

O ceticismo muito bem argumentado de Renata Vasconcellos ante as “revoluções” propostas pelo candidato, assim como a firmeza moral reprovando o vício cirista pelo insulto, foram um bom indicativo de que é possível debater em um nível alto, sem servilismo nem pé no peito.

Ciro foi evoluindo conforme os temas. Foi pouco convincente na defesa do próprio estilo agressivo, na proposta de reforma da política, na ideia de como se dará a governabilidade e no seu modelo de governança (democracia direta à moda suíça, really?). Muita fantasia e desejo, pouco senso prático para um homem que se orgulha tanto de ter um livro com todas as saídas para o Brasil. Mesmo porque Ciro oferece como único fiador para as “revoluções” propostas apenas o “eu”.

Mas foi se tornando cada vez mais convincente. Na defesa de suas convicções democráticas, tão diferentes das de Bolsonaro, em vender-se como um sujeito competente e que entende de economia, em política ambiental e da Amazônia brasileira, na proposta de universalização do saneamento básico. No fim, gerou a imagem de alguém que sabe do que está falando e que, para a maioria dos problemas nacionais, prevê alguma saída razoável. “O Brasil tem saída” parece um bom lema. Em suma, um excelente candidato que veio parar na eleição errada. Perde o Brasil.

A entrevista com Lula foi cercada por muito interessante, dado o volume de expectativas geradas. Primeiro, por causa do refugo do petista ante convites para participar de debates presidenciais, aceitando apenas entrevistas em ambientes amistosos e com entrevistadores de considerável boa vontade. Segundo, por causa do histórico de hostilidade e mágoas entre Lula e o jornalismo da Globo. As pessoas imaginavam como Lula iria se sair diante de questões sobre o triplex, o sítio e todas as outras acusações que lhe foram feitas, as condenações, a prisão e, enfim, a anulação das condenações, bem como sobre os escândalos de corrupção durante o governo do PT e sobre os erros de políticas públicas de Dilma Rousseff.

Todos os interlocutores da entrevista comportaram-se com urbanidade e respeito mútuo. A primeira frase de Bonner, que serviu de prólogo à entrevista, representou um fato histórico nas relações do jornalismo da Globo com Lula e um divisor de águas: “O STF lhe deu razão, considerou Sérgio Moro parcial e anulou as condenações contra o senhor. Portanto, o senhor não deve nada à Justiça”. Léguas distanciam essa premissa das inúmeras ressalvas, feitas por comentaristas da emissora, de que “Lula não foi inocentado”. Isso não é pouco e distendeu o ambiente, abrindo espaço para um clima em que, sim, houve perguntas difíceis e duras, mas com seriedade e respeito. Bonner e Renata Vasconcellos aliviaram de lá, Lula aliviou de cá, ganhou quem prefere um atrito construtivo de pensamento à esgrima entre jornalistas e candidatos.

Foi provavelmente a melhor entrevista de Lula na bancada do Jornal Nacional. As perguntas, de fato, não envolveram o nível tradicional de hostilidade e, em alguns casos, houve até alguma empatia, construída pelos dois campos. E Lula não foi para o ataque panfletário à mídia, ao jornalismo, à Globo, no qual incorre com embaraçosa frequência. Assim, depois de um início tenso, Lula ficou muito à vontade e pareceu desfrutar o momento, situação em que se torna um orador irresistível e muito pessoal.

As questões sobre como evitar que se repitam as situações de corrupção, as decisões erradas de Dilma, a destruição das instituições de controle como feitas por Bolsonaro, foram todas respondidas com um olho no retrovisor. Lula não promete o duplo twist carpado com mortal na segunda pirueta, como acredita corretamente Ciro Gomes, promete fazer melhor e de forma mais correta, agora com o companheiro Alckmin, o que já fez no passado. O que Lula propõe é um retorno ao seu primeiro governo, com apenas uma correção, descrita sempre em termos pessoais: “Eu quero voltar para ser melhor do que fui”, “eu aprendi com os erros”.

Lula está apaixonado por Alckmin, citou-o dez vezes como companheiro de um projeto. Há de ser um uso estratégico, para captar a benevolência de parte do eleitorado tucano que fecharia a conta para encerrar a disputa no primeiro turno, mas não é a primeira vez que Lula trata assim um vice seu. Já o fez com o “companheiro José de Alencar”. De qualquer forma, a ideia de que dois septuagenários possam assumir um governo de conciliação nacional em 2023 pode parecer sedutora a muitas Terezas Batistas Cansadas de Guerra, que é a situação de muitos brasileiros.

Os pontos fracos estão relacionados às dificuldades de Lula em relações internacionais, à falta de projetos detalhados para o futuro, à impossibilidade de uma autêntica autocrítica, à dificuldade de distanciamento da parte mais radical do PT. Nesses temas, Lula esquiva-se, faz metáforas de futebol, muda de assunto, falava de cervejinha, como sempre. Mas foi muito feliz ao dizer que Bolsonaro não manda mais nada, que acabou o presidencialismo, que o presidente sequer cuida do orçamento público, que é refém de Arthur Lira.

Tudo somado, saiu-se bastante bem. Testou argumentos novos para velhas questões e, fora um incidente ou outro, parece que deu certo.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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