O mal-estar feminino no divã

O mal-estar feminino no divã

 

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2021 é “maternidade”


Deitadas no divã mulheres-mães contemporâneas reclamam da sobrecarga de suas rotinas. Queixas de cansaço, culpa, exaustão física e mental. Mulheres do século 21 usufruem das conquistas feministas do século passado e hoje competem em pé de igualdade com homens nos ambientes de trabalho. Entretanto, sob o véu da igualdade esconde-se uma armadilha perigosa: definiu-se igualitário um mundo em que mulheres teriam “apenas” que continuar a realizar as tarefas de sempre, acrescentando afazeres até então restritos aos homens.

Por séculos foi vetado às mulheres experiências para além do ambiente doméstico. Proibidas de estudar, trabalhar, votar; castradas em seus desejos, eram obrigadas a encontrar satisfação no casamento e na maternidade. A histeria surge como sintoma da insatisfação e da privação às quais eram submetidas. O que Freud definiu como inveja do pênis poderíamos pensar como resultado de uma sociedade patriarcal que inviabilizou outros destinos de satisfação pulsional às mulheres? Atemorizadas pela ideia de voltarem a ocupar um único lugar (de trabalhadoras do lar), as mulheres, desde a metade do século 20, estão tentando provar sua aptidão às experiências antes reservadas somente aos homens. O custo tem sido alto.

Cria-se então o mito da mulher maravilha dos tempos atuais, que é capaz de duplas, triplas jornadas. Fomenta-se um ideal inalcançável, responsável pelo sentimento de culpa tão comumente relatado por mulheres. Aliás, mulher, mãe e culpa são termos que viraram sinônimos no mundo atual. Uma analisanda declarava algo bastante corriqueiro de se ouvir em conversas femininas: “Quando estou no trabalho me sinto devendo aos meus filhos e marido, quando estou com eles, me sinto perdendo espaço no trabalho”. A presença das mulheres no mundo do trabalho foi para elas uma transgressão; para os homens, uma concessão. Quem transgride, alimenta a culpa. Quem concede, fica credor, afirma Rosiska Darcy de Oliveira.

Observamos hoje alguns homens conscientes de seu papel e presentes na vida doméstica e nos cuidados com os filhos, todavia, esse comportamento inédito é aplaudido como se essa função não fizesse parte das obrigações de quem resolve formar uma família, e sim como prova de generosidade e bom caráter. Do outro lado (o das mulheres) a execução das mesmas tarefas é absorvida com normalidade, nada que mereça destaque.

A idealização em torno da figura feminina, como a convicção de que mulheres suportam uma dose maior de sofrimento e de que dispõem de um instinto maternal que as fazem naturalmente aptas aos cuidados com os outros, serve como uma arapuca disfarçada de elogio. Essas supostas “vantagens” femininas no fim das contas só as empurram para um beco sem saída. Aparentemente livres, as mulheres contemporâneas estão aprisionadas a um arquétipo feminino idealizado.

Mas a serviço de que estão estes ideais? A mulher perfeita e multitarefas é uma figura mítica que sustenta a fantasia narcísica de plenitude e recria a onipotência da mulher enquanto figura divina, resquícios de um passado não tão distante, cujos efeitos sentimos até hoje. Cada época produz mitos culturais que vão sendo substituídos por novas ilusões que ocupam o imaginário social. As narrativas desenham em cada tempo o que tem valor e o que é desvalorizado, o que é papel do homem e da mulher. O excesso de narcisismo, que culmina na exigência de perfeição, corresponde aos ideais contemporâneos que visam a um apagamento das vulnerabilidades do humano, gerando boa dose de mal-estar.

Observa-se ainda um culto ao corpo feminino, aprisionando as mulheres a fantasias de eterna juventude. Espera-se que mesmo após a gestação o corpo permaneça inalterado, negando-se a transformação inscrita no corpo através da cicatriz da cesariana ou da barriga que não voltou para o lugar mesmo após muita ginástica. Inscrição que também se dá, obviamente, a nível psíquico, já que imensa mudança decorre dessa experiência.

Uma analisanda com um bebê de cinco meses queixava-se do “estrago” que a gestação havia causado em seu corpo: “Na primeira gestação a minha barriga voltou para o lugar muito rápido. Desta vez me sinto feia e fora de forma, flácida e cheia de celulites. Temo que meu marido comece a olhar para outras mulheres. Observo que minha irmã não passou pelo mesmo problema. Ela está com o corpo perfeito, nem parece que é mãe de dois meninos grandes”. A expectativa de se manterem ativas, esbeltas, de não envelhecerem e ainda por cima manterem viva a sensualidade dos tempos de juventude, dificultam as possibilidades de elaborar os lutos e as mudanças que o corpo impõe ao psiquismo ao longo do tempo. Os lutos, quando silenciados, não raro se transformam em depressões, excessivamente medicadas, em vez de significadas e simbolizadas. Na fala dessa analisanda, notamos a ideia de que se há alguém capaz de alcançar esse ideal, então por que ela mesma não poderia? Misturadas a esses imperativos desaparecem assim as mulheres-humanas, para que em seu lugar brilhe o narcisismo.

Gabriela Seben, 37, e Rafaela Degani, 36, são psicanalistas, mães e
autoras do livro “A analista grávida”. Moram em Porto Alegre, RS,
onde integram a sociedade brasileira de psicanálise (SBPdePA).

 

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