O feminismo sindicalista que vem

O feminismo sindicalista que vem
As Jornaleras de Huelva en Lucha: luta pela melhoria das condições de vida de trabalhadores (Foto: Reprodução/Facebook)

 

“Esta assembleia é um ato profundamente político: põe em foco os terríveis conflitos que atravessam as nossas vidas”, disse Justa Montero na assembleia de encerramento da conferência “O feminismo sindicalista que vem”, realizada em dezembro de 2020, em Madrid.

Ali, nesse primeiro ato presencial depois de tantos meses de pandemia, nós havíamos convocado participantes de diferentes lutas que compartilham entre si um claro protagonismo feminino e feminista. Entre eles, os seguintes grupos:

As Jornaleras de Huelva en Lucha, que desde março intensificaram a presença em campos e em redes, colocando no centro do debate a relação direta entre exploração do trabalho, lei de imigração e violência sexual.

As riders (motoristas de aplicativos), que em abril convocaram a primeira greve internacional de entregadores e entregadoras, coordenada entre Espanha e América Latina.

As mulheres do Sindicato dos Inquilin@s, responsáveis pela primeira tentativa de greve de aluguel em 40 anos.

As Mulheres do Território Doméstico e do Coletivo de Prostitutas de Sevilha, que organizaram caixas de resistência e grupos de apoio em tempos de confinamento estrito em que milhares de mulheres ficaram sem acesso a renda.

As representantes do Sindicato das Trabalhadoras do Lar e dos Cuidados e do Sindicato das Trabalhadoras Sexuais (OTRAS), que continuam os esforços de organização sindical desses trabalhos não reconhecidos como trabalho e, dessa forma, permanecem fora dos marcos de proteção, garantia e negociação reconhecidos em nossa sociedade patriarcal.

As faxineiras do Hospital Gregorio Marañón, que em junho de 2020 fizeram uma greve contra a terceirização da limpeza pública – e ganharam.

As empregadas domésticas ou kellys, que em agosto levaram a julgamento o grupo de empresas com repartições de limpeza, manutenção e serviços auxiliares Eulen pela demissão de 25 colegas – e conseguiram que a dispensa fosse anulada.

As trabalhadoras de lar de idosos, que saíram às ruas e se reuniram com famílias e usuários, exigindo a continuidade entre os direitos de quem cuida e os direitos das pessoas que são cuidadas.

As mulheres da Plataforma de Atingidos pela Hipoteca, que durante todo o confinamento seguiram colocando seus corpos para impedir despejos por falta de pagamento de aluguel ou dívida.

O protagonismo feminino em todas essas lutas é evidente, assim como a lente feminista e antirracista pela qual a realidade é vista e nomeada.

No encontro, a imagem desenhada no relato compartilhado entre todas essas mulheres se contrapôs à ideia hegemônica de que, durante a pandemia “o feminismo esteve adormecido e quebrado”.

 

Não, o feminismo de rua,
aquele que luta batalha a
batalha, sequer dormiu.
Ele tem colocado seu corpo
na defesa da vida e da
dignidade das pessoas que
estão abaixo, ameaçadas
pelos efeitos e pela gestão
da pandemia.

 

 

A assembleia de encerramento colocou sobre a mesa um punhado de conclusões que bem poderiam formar um programa minimamente compartilhado.

Ficou claro que na Europa não haverá política feminista ou política de igualdade se a lei de imigração não for revogada, se não se derrogarem as reformas trabalhistas, se as casas vazias nas mãos dos bancos não forem expropriadas, se não forem sustentados e democratizados os serviços públicos.

Ficou claro que, com o punitivismo, que persegue mulheres pobres e trans, não há uma política feminista possível, e que aumentar a presença policial não torna a vida melhor, apenas mais insegura.

Também ficou claro que está surgindo um feminismo sindicalista que desafia tanto o sindicalismo quanto o feminismo.

Desafia o sindicalismo porque põe em causa que a divisão entre trabalho produtivo e reprodutivo é tão artificial quanto política porque responde a um regime de dominação que coloca em situação de dependência quem se dedica a atividades de vínculo e cuidado da vida.

Por isso não podemos dar por certo, remontar às nossas organizações de luta, considerar que a luta por salários e horas de trabalho remunerado é a única prioridade.

Por isso devemos reconhecer que a luta pelas condições de existência não se realiza apenas no local de trabalho, mas também na batalha pelos serviços públicos, pela moradia, pela terra, por tudo que nos proteja da violência sexual e física, que impeça nosso endividamento ou nossa migração forçada; que garanta a autodeterminação de nossas vidas, de nossos corpos, de nossas energias reprodutivas e criativas.

Não há divisões que valham a pena porque a vida é um continuum e também a organização da qual precisamos.

O feminismo sindicalista interpela também os feminismos porque requer atenção a como e a partir do que vivemos, às formas concretas de explorar, extrair e tirar nossas energias e nossos recursos.

Ele nos incentiva a não nos desviar nem mesmo um pouco das necessidades da materialidade da vida para construir capacidade de autoproteção e força de negociação; a nos unir àquelas que estão, àquelas que foram e àquelas que virão; nos incentiva a sustentar as lutas que as mulheres e as cis-hetero-dissidentes já travam sobre o terreno.

Como disseram as companheiras do “Território Doméstico”: “para nos organizarmos politicamente tivemos que nos sustentar”. Esse apoio, que nos trança e nos dá força, que estimula a nossa rebelião nas ruas, nas camas e nas panelas, é o nosso feminismo. A crise revelou-nos com mais força do que nunca.

Queremos o pão, mas também as rosas. Queremos uma vida que mereça não a dor, mas a alegria de ser vivida e compartilhada. E não para algumas: para todas, para todes.

Este texto é resultado de
uma parceria entre a Revista
Cult e a La Laboratoria:
espacio transnacional de
investigación feminista

 


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