O exemplo

O exemplo
(Foto: Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de novembro de 2020 é “eleições”.


Quando eu era criança minha mãe me levava para votar com ela. Lembro-me que, apesar de não compreender a importância constitucional que envolve esse ato, eu observava a agitação impaciente das filas e os rostos cansados buscando por salas certas; observava a arquitetura crua de uma ampla escola que não frequentava e, principalmente, encarava o chão em busca dos rostos em panfletos descartados e espalhados em uma tentativa de colher votos desinteressados.

Agora, quando observo as pessoas, pergunto-me no que estão pensando. Pergunto-me como chegaram aos candidatos em quem estão apostando – porque votar é também uma aposta –, se estão contestando sua decisão ou se apenas estão pensando no que farão quando cumprirem seu dever obrigatório, um dever ao qual já estão habituadas e que não tem maior função em nossa sociedade desiludida do que preencher uma lista de obrigatoriedades desagradáveis. E, se ainda vejo um rosto em um panfleto, é mais com desconfiança das intenções ocultas em seu sorriso do que por um interesse inocente pelos traços de sua compleição.

Em geral, as pessoas não estão ansiosas para votar. Poucas estão felizes ou determinadas ou creem francamente no ato político de votar; a desesperança em relação à mudança e a conformidade com sistemas que oscilam de ruins a piores é uma tatuagem marcada à ferro desde nosso nascimento. Alguns contestam se a opção de votar seria uma solução, se tiraria a política da lista de tarefas e a tornaria um ato de fé de fato. Talvez. Talvez a desilusão com os outros venha com uma desilusão com nós mesmos, mesmo que não saibamos como admitir.

É muito comum ouvir discursos contra a corrupção, não apenas nos lábios de políticos, que em geral não o dizem por mais do que retórica, mas nos de cidadãos escandalizados com o roubo e a traição – traição, é claro, porque se espera que aqueles que se erguem da areia movediça não cuspam nos que estão afundando. O indignante é que ninguém aprenda, ano após ano, que política exige mais do que saber apontar dedos, e que reproduzi-la em menor escala ainda é alimentá-la. Mas o mais curioso, imagino, seja que, enquanto a saliva escorre das testas dos atingidos pela deslealdade, eles se voltem para afundar a cabeça daqueles que ainda buscam por um último fôlego.

Ao mesmo tempo que a população se indigna contra as imensas quantias desviadas, ela se volta a pequenos atos de vandalismo, a pequenos furtos inocentes, e não reconhece que eles edificam a pirâmide titubeante em que a política se equilibra. Se você toma o que pode porque algo foi tomado de você antes, esse ato apenas cria uma nova cadeia de pequenas vinganças que eventualmente chega à camada de poder, pois os políticos não são entidades saídas das nuvens ou do lodo, mas crianças vagando em filas eleitorais e convivendo com a mesma dinâmica de não devolver o troco certo, de falsificar trabalhos escolares em nome de dinheiro extra, de atropelar e não prestar socorro, de agredir sem punição, de roubar batons em lojas e de aprender a ignorar problemas que não nos envolvem diretamente.

São as mesmas pessoas que aprenderam a não discutir política por ser um tema sensível, e que, quando discutem, é de forma similar a um duelo, sem concessão, apenas um tentando apunhalar o outro. Pessoas que cresceram aprendendo a odiar seus problemas sem solucioná-los, a ignorar o outro porque as dificuldades deles são menores do que as suas, ou por apenas uma questão de caráter e fraqueza. Os políticos são o povo, e o povo fecha os olhos para suas próprias corrupções.

Votar nunca me pareceu uma questão de mera simpatia. Exige pesquisa e cuidado para não confundir com sucesso o reflexo deformado do que chamamos de “ser esperto” – quando é um companheiro próximo lucrando às custas do suor alheio – e de “corrupção” quando é o lucro é sobre o nosso.

Giovanna Barsotti, 22, mora em São Paulo.
É formada em Letras com Habilitação em
Tradução e gosta de passar suas madrugadas
lendo e escrevendo.

 

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