O desejo pela cura

O desejo pela cura

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2021 é “cura”


Parte da cura está na vontade de curar-se.

Sêneca

 

Há alguns anos, uma respeitada revista médica publicou curiosa pesquisa sobre o comportamento de pacientes ambulatoriais, nos Estados Unidos, que buscavam ajuda de profissionais das mais variadas especialidades. Tratava-se, na maioria das vezes, de doenças crônicas, que demandavam acompanhamento em sucessivos atendimentos. Em aproximadamente cinquenta por cento dos casos, tais pacientes de alguma forma negligenciavam o tratamento, seja tomando os medicamentos receitados de modo errado — por vezes nem os tomavam —, seja interrompendo o tratamento por conta própria ou retardando exames complementares solicitados, descumprindo dieta e outros cuidados, ou esquecendo as datas em que deveriam retornar à consulta. Acrescia-se a isso o aleatório juízo de valor que faziam a respeito do tratamento proposto pelo médico e o relato pouco objetivo que apresentavam sobre o próprio estado. Havia até pacientes que declaradamente mentiam para o médico acerca do próprio estado de saúde.

Os pesquisadores levantaram várias hipóteses para tal comportamento. Baixa autoconsciência? Psicopatias variadas, muito mais comuns na população do que se supõe? Pura e simples leviandade? Baixa qualidade do atendimento médico, em que não se estabelece uma boa relação médico-paciente?

Talvez um pouco de tudo isso. Olhando-se para dentro do problema, depara-se com um drama humano universal e antigo. No fundo, aqueles pacientes não desejavam curar-se. Eles precisavam da doença! Ela lhes servia! Muitas vezes a doença é um escudo, sob o qual se escondem afetos; um lenço que acena a necessidade do náufrago; um choro que anuncia a fome que não se sacia com medicamentos.

Não existe uma solução pronta e evidente para o fenômeno. Ao se tratar do processo de cura, cogita-se sempre na doença. Só precisa de cura quem se encontra enfermo. Será?

A rigor, somos todos doentes, se somos humanos. Diante da morte quem permanece impassível? Diante da solidão quem sorri? Diante da culpa, do equívoco, da melancolia, do medo, da palavra mal formulada, da crueldade própria e alheia, quem escarnece? Diante da injustiça, para si e para o outro, quem fica incólume? Diante da inveja, sua e alheia, quem não se abala? Enfim, quem passa ao largo da ignorância, individual e coletiva?

Há em todo ser humano um buraco que nunca se preenche. Talvez seja ele a nossa doença primordial, a nos igualar a todos na pena de viver. Eis aí a verdadeira cura que buscamos. Dirão que se trata de doença incurável. Pode ser. Mas o médico não desiste de seu paciente diante de uma doença incurável — trata de mitigá-la na medida do possível. Procura mantê-la em nível tolerável, a permitir que o doente frua a vida no que ela tem de dignidade e felicidade possíveis.

Assim também o homem, esse médico de si mesmo, a quem cabe curar-se, ainda que com a ajuda de outro homem. Há meios de preencher parcialmente esse buraco. Cabe a cada um a busca dos materiais com que tentará fazê-lo. Além da medicina, estão aí, no mundo, a solidariedade, a filosofia, o diálogo, a meditação, o estudo, a ciência, a arte, a espiritualidade, o cultivo da palavra. Está também a possibilidade do abraço. Mas antes de tudo, é necessário o desejo de curar-se.

 

Paulo Sergio Viana, 72, mora em Lorena, São Paulo,
onde trabalha como médico clínico há 50 anos.
Atualmente está em processo de interromper sua
carreira profissional. É esperantista atuante
desde a juventude.

 

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