O descompasso entre República e Democracia

O descompasso entre República e Democracia
O descompasso entre república e democracia (Arte Andreia Freire / Carta Magna, conjunto de leis que regem a vida de uma nação)

 

Análises da crise político-econômica exclusivamente conjunturais pecam por voltarem seus olhares ao governo federal a partir da relação entre situação e oposição. Tipos comuns dessas análises incluem: (1) dar destaque para a corrupção que seria estrutural no Estado brasileiro e que, agora, com a atuação das instituições de controle, estaria vindo à tona; (2) enfatizar a crise econômica que o país atravessa; (3) ressaltar a falta de articulação política do atual executivo com os demais poderes, especialmente o legislativo; ou (4) apontar que a crise é menor do que aparenta e é fruto de uma insatisfação da oposição. Todos esses tipos de análise desconsideram que os partidos que ocupam a situação e a oposição, especialmente PT e PSDB, vêm contribuindo para a conformação institucional brasileira desde o processo de democratização, com diferentes papéis. Nesse sentido, talvez a crise, principalmente a política, seja fruto mais dessa atuação ao longo dos anos, do que propriamente resultado de incompetências ou fenômenos circunstanciais.

O processo de democratização brasileiro, que culminou com a promulgação da Constituição de 1988, envolvia eleições diretas, igualdade de direitos, constitucionalização de direitos sociais – em suma, comportava uma demanda, presente em diversos segmentos sociais, mas de forma mais madura e enfática no movimento sanitarista, que reivindicava que a sociedade permeasse o Estado. A democratização do Estado deveria acontecer não somente pela franquia universal e irrestrita do voto, mas também pela permeabilidade das estruturas estatais à participação social e à oitiva de segmentos relevantes de cada setor de política social.

O clamor por democratização foi acompanhado por uma demanda menos explícita de republicanização no Estado brasileiro. Tal necessidade de republicanização vinha sendo apontada amplamente no debate intelectual brasileiro daquele período e também no período posterior, por exemplo em textos e livros de Raymundo Faoro, Simon Schwartzman, Maria Sylvia Carvalho Franco, Fernando Henrique Cardoso e, posteriormente, Francisco de Oliveira, por meio da crítica ao patrimonialismo e da captura de recursos – políticos e econômicos – por grupos econômicos com acesso privilegiado ao poder político.

A partir do debate intelectual sobre a formação da república brasileira, pode-se concluir que houve um descompasso entre a demanda por democratização e a por republicanização. Aquela remontava mais diretamente a um passado então recente – o período da ditadura militar – e esta, à própria formação do Estado brasileiro, que, desde sua origem, se constituiu por relações entre Estado e sociedade baseadas no privilégio e na coincidência, inclusive pessoal, entre aqueles que exercem o poder político e o econômico. As demandas democráticas diziam respeito a conquistas institucionais, de igualdade política e constitucionalização de direitos sociais. Os avanços da Constituição de 1988, nesse sentido, não foram pequenos. As demandas pela efetiva transformação do Estado em uma república dizem respeito à adoção, ainda que paulatina, de um padrão diferente de relações entre o Estado e a sociedade. De certa forma, o que se espera é que a sociedade adentre o Estado, não com seus interesses particulares, mas com suas demandas, especialmente para formular as próprias políticas públicas.

Se a democracia envolve uma demanda inclusiva fundamental de tipo formal, a república diz respeito a algo mais complexo e difícil de conquistar, a mudança na percepção das relações entre Estado e sociedade tanto pelos agentes do Estado quanto pelos atores sociais. Apesar de haver no caldo social da Constituição de 1988 a dupla demanda por democratização e republicanização, os primeiros governos deixaram de lado as duas demandas. Estavam centrados em basicamente um esforço: reduzir a inflação do país. Num contexto de sucessivas crises políticas e econômicas, instabilidade ministerial e insatisfação popular, a formação política brasileira estagnou.

Nos governos Cardoso, foi aprovado um conjunto de leis que contribuíram para a estruturação do Estado e principalmente das relações entre a União e os entes subnacionais: lei de responsabilidade fiscal, instituição de tributos – as contribuições sociais – cujas receitas se destinariam exclusivamente à União, reforma administrativa do aparelho do Estado, entre outras medidas, inclusive a aprovação de dois Planos Nacionais de Direitos Humanos, tema ainda caro ao PSDB naquele período.

Até o fim do segundo governo Cardoso, a democratização do Estado se deu de forma bastante minimalista, com a garantia – ao menos institucional – de direitos civis básicos e a prioridade do atendimento do direito universal ao ensino básico. Suas ações se destacaram sobretudo no campo fiscal e monetário. Consolidou-se o presidencialismo de coalizão, forma de governo em que a relação entre executivo e legislativo se constitui a partir de coalizões de forma a configurar maiorias políticas, ainda que circunstanciais, e garantir a estabilidade do governo, com a aprovação das medidas necessárias para a consecução de seu projeto político.

A partir de 2003, com a chegada de Lula e da coligação liderada pelo PT ao poder, os ideais de democratização ganharam intensidade. O ideal de inclusão deixou de se realizar apenas pela franquia eleitoral, para passar a abranger também uma renda mínima que extinguisse a miséria. Ao longo dos dois governos Lula, o Bolsa Família se consolidou e também foram criados vários programas de ampliação do crédito para o acesso da população de renda mais baixa a bens de consumo duráveis.

A democratização institucional também ganhou um aspecto mais sofisticado e complexo, ao serem organizadas, em maior intensidade, conferências participativas em níveis municipal, estadual e nacional e conselhos de políticas, contando com a participação cada vez maior de diversos segmentos da sociedade na formulação e na fiscalização das políticas pelo Executivo. Em relação à republicanização do Estado, a atenção foi voltada para a prevenção e o combate à corrupção, com a criação da Controladoria Geral da União. Posteriormente, vieram mecanismos de transparência governamental, não somente no nível federal, mas também no âmbito dos estados e municípios.

Após esses avanços bastante significativos na democratização do país e no aumento da transparência das atividades do Estado, era esperada a ampliação de sua republicanização. Mesmo se a corrupção começou a ser combatida – e o próprio PT foi o principal alvo, com o Mensalão e a Lava-Jato –, a instauração e a consolidação da civilidade nas relações sociais não progrediu.

Ao contrário, a partir do primeiro governo Dilma, a república retrocedeu, pelo menos no pluralismo político e nos direitos humanos. Neste último ponto, basta lembrar a nomeação do deputado Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos, como moeda de troca para a garantia da presidência de outras comissões.

No segundo mandato, ainda em seu início, o Executivo perdeu – ou abdicou de – o poder de colocar a sua agenda, e a política conservadora aproveitou esse vazio, especialmente a partir da nomeação de Eduardo Cunha à presidência da Câmara. O não exercício do poder de agenda do Executivo, eleito majoritariamente, abriu espaço para que um deputado – ainda que eleito –, representante de um segmento muito específico da população, transformasse o legislativo em uma casa em que se vota ao sabor da chantagem e da circunstância, invocando a maioria em pautas como a redução da maioridade penal, e agindo de acordo com seus interesses, quando o tema em pauta é o financiamento empresarial de campanhas eleitorais, em relação ao qual a maioria da população é contra. O legislativo virou palco para a tirania, aqui entendida como poder exercido acima das leis, não somente em seu sentido formal, mas no sentido de pactos socialmente assumidos.

Com o poder Executivo mal exercido, surge um paradoxo: os poderes legislativo e judiciário, que deveriam equilibrar, frear, contrapesar o Executivo, passam a atuar sem freios, enquanto o Executivo é minado pela sobreposição dos demais poderes. Enquanto o Executivo tem a responsabilidade de implementar todas as políticas públicas, e depende de aprovações majoritárias, cada parlamentar precisa da aprovação apenas de sua base eleitoral, e os juízes, nem isso.

Se esse é o quadro institucional, por outro lado, em sua relação com a sociedade, o governo liderado pelo PT agiu de forma limitada em duas frentes: (1) colocou como prioridade a democratização econômica por meio de uma renda básica e o acesso ao consumo, sem tocar em pontos cruciais da desigualdade, como os benefícios obtidos pelo sistema financeiro e a tributação sobre os mais ricos, e (2) ampliou a participação social no interior do próprio Executivo, sem atuar em outros campos sociais de modo a transformar valores sociais e reduzir a cisão social entre ricos e pobres, privilegiados e desprivilegiados – de modo amplo – o que talvez viabilizasse inclusive uma representação legislativa diferente. Com essas limitações, o governo ampliou o acesso à democracia para os mais pobres e diversos segmentos sociais, mas contribuiu pouco para a republicanização da sociedade, que seria obtida a partir da percepção geral de compartilhamento de riquezas, espaços e direitos comuns. Com a crise econômica e o esgotamento do modelo de inclusão adotado, o quadro que se formou foi de repulsa ao governo pelos segmentos mais ricos, porque perderam alguns referenciais de sua distinção, e por parte dos segmentos mais pobres porque não foram, de fato, incluídos. Agora, com a ameaça de cortes financeiros inclusive nos programas sociais, o governo corre o risco de perder também a sua base social mais sólida.

O projeto político de governo exitoso na sua proposta de democratização foi insuficiente do ponto de vista da republicanização. Esse esgotamento se agrava com o paradoxo de que a estrutura institucional e política, se dá muitos poderes ao Executivo, também lhe dá uma responsabilidade quase exclusiva. O fracasso do PT no governo, no sentido da consolidação republicana do país, é necessariamente o de todos os governos que o antecederam.


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