O desatino do general

O desatino do general
(Arte Andreia Freire/ Revist CULT)

 

Em entrevista dada no último domingo ao jornal Folha de S. Paulo, o general Eduardo Villas Bôas justificou o tweet que postou às vésperas do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula pelo STF com a defesa da estabilidade e com o medo de “que a coisa poderia fugir ao nosso controle” se ele não a expressasse.

Para quem não lembra, o texto do general colocava o Exército como defensor do “anseio de todos os cidadãos de bem”, num ato de “repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia”. O último parágrafo, de forma dúbia, afirmava que a corporação se manteria atenta “às suas missões institucionais”. Os termos “impunidade” e o desfecho do texto, assim, se formatavam como uma clara mensagem de que não havia resultado possível no julgamento do habeas corpus do ex-presidente que não a manutenção da sua prisão.

O general se recorda do horário em que pubicou o post, 20h20, e explicita que o ato não era algo isolado, uma vez que amparado pela Rede Globo de televisão: “A gente soltou [o post no Twitter] 20h20, no fim do Jornal Nacional, o William Bonner leu nossa nota”. Raduan Nassar em Lavoura arcaica, já nos alertava que corremos graves riscos quando falamos. O general não apenas se lembra do horário estratégico de divulgação da postagem como, de certa forma, regozija o fato de Willian Bonner ter lido a mensagem no ar.

Vendo os fatos em retrospectiva, cabe a seguinte indagação: caso o STF tivesse decidido pela Constituição da República de 1988, reafirmado o princípio da presunção de inocência e mandado expedir o alvará de soltura de Lula, o que teria feito o Exército comandado por Villas Bôas? Mandaria fechar o STF com um cabo e um soldado? Prenderia Lula por conta própria num quartel-general? Fecharia por consequência o Congresso Nacional, derrubaria o presidente em exercício e assumiria o poder com as forças das armas? E se houvesse reação popular, suspenderia direitos e garantias individuais e disseminaria uma caçada contra opositores?

A ameaça pretoriana estava mais no campo do jogo político e da retórica do que da realidade, pois não havia condições políticas para um golpe de Estado militar. O blefe, típico de jogares de cartas e da política, caiu no gosto de quem tem as armas. Ao pressionar o STF, o general expôs uma das facetas dos tempos atuais: o crescente assanhamento político das Forças Armadas.

Quando da intervenção das Forças Armadas no Estado do Rio de Janeiro, integrantes que até pouco tempo antes haviam rechaçado esse papel para a instituição, vendo na ação uma janela para reivindicar aumento dos recursos, terminaram por não opor resistências. Assim, o nobre papel de proteção da soberania nacional e da defesa do território, acaba se esvaindo por ingerências indevidas no Poder Judiciário, no processo eleitoral, no cumprimento dos decretos de GLO (garantia da lei da ordem) e na aceitação do encargo de atuar como agente de segurança pública no Estado do Rio.

Diante da criminalização da política nos últimos anos e do vácuo que se abriu em razão dela, como hienas disputando um naco de carne, primeiro chegaram integrantes do Judiciário com o seu protagonismo submisso, para lembrar aqui um conceito do jurista Marcelo Semer e, agora, generais da ativa e da reserva, têm se colocado como predadores do poder civil. No caso do tweet do general, o ato acaba servindo como teste de pressão. Se cederem, avanço um pouco mais. No caso, com exceção de Celso de Mello, não houve por parte da presidência da Corte Suprema uma resposta à altura que o momento exigia. Diante da titubeação, essa ingerência acabou passando incólume.

Por óbvio, não apenas a manifestação estava atrelada aos interesses de um dos grupos econômicos mais poderosos do país, a Rede Globo, como refletia os interesses do capital que não aceitava sequer a possibilidade de correr risco de um freio de arrumação nas reformas levadas a cabo pelo projeto do golpe de 2016. O cronograma não poderia parar, mesmo que ao custo da ilegalidade manifesta de uma prisão e do desrespeito aos mandamentos constitucionais. Mandamento sob o qual o general jurou defesa inconteste.

Desta forma, os chamados aparelhos ideológicos de Estado descritos por Althusser, agiam para camuflar com a panaceia de cidadãos de bem defendidos pelo general versus impunidade, os interesses de umas poucas dezenas de empresários, grandes corporações e mercado financeiro em detrimento dos interesses de milhões de trabalhadores e trabalhadoras.

Eis que dentro de alguns dias chegará ao fim o mandato do general à frente do Exército. Villas Bôas não apenas levará consigo essa nódoa em sua farda como com ela contribuiu para a chegada ao poder de um político profissional que um dia fora capitão. Nos jornais se lê que o próximo indicado será alguém que se formou na turma do presidente eleito, o deputado Jair Bolsonaro. Vários militares têm sido indicados a ocupar cargos no Executivo e o novo presidente do STF, Dias Toffoli, talvez para ler em primeira mão postagens dessa natureza, levou para sua assessoria um general da reserva.

Na democracia, o poder das armas está submetido ao poder civil, sendo, portanto, inaceitáveis ameaças e jogos de pressão de quaisquer ordens do poder militar sobre a população e os poderes constituídos. Não se pode tolerar a consumação de pequenas e cotidianas tiranias, mesmo que disfarçadas de um “ingênuo” post de rede social.

As perguntas que ficam para os próximos meses são: como serão as postagens do próximo chefe do Exército no Twitter e, diante de uma crise no novo governo, a ameaça recairá sobre quem dessa vez? Qual postagem terá mais curtidas: a do presidente ou do chefe do exército? E se um deles retuitar a postagem do outro?


PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP

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