O complô comunista como matriz governamental de Bolsonaro

O complô comunista como matriz governamental de Bolsonaro
(Foto: Arte Revista CULT)

 

Quando as pessoas pensam em política, geralmente imaginam instituições, como partidos, o governo e o parlamento, as negociações entre interesses, agendas e ideologias, o processo legislativo, a elaboração e a implementação de políticas públicas e coisas semelhantes. Na verdade, grande parte do que se faz em política é comunicação política, a atividade constante para convencer pessoas, para levá-las a pensar, a sentir-se e a comportar-se de um determinado modo. Grande parte do que se faz em política é a luta por corações e mentes, como se dizia, ou por conquista da atenção coletiva, por imagem pública, para convencer as pessoas de quais são os principais problemas sociais para os quais a política tem a resposta, de quais respostas as pessoas realmente precisam agora e por que as respostas que oferecemos são preferíveis àquelas do concorrente. 

Já na comunicação política, grande parte da energia é despendida para fornecer interpretações da realidade na forma de histórias ou narrativas e para convencer o maior possível número de pessoas a adotá-las como forma de explicar o mundo, de compreender o que com elas se passa e de justificar os próprios sentimentos e atitudes. 

Um modelo de narrativa de muita eficiência política são histórias de complôs, também conhecidas como “teorias da conspiração”. De um ponto de vista estritamente histórico, é impressionante a quantidade de narrativas conspiratórias, a maioria sem pé nem cabeça, a que aderiram contingentes expressivos de pessoas, com consequências frequentemente muito severas. 

Não tem facção política que resista a recorrer a uma boa narrativa persecutória. Primeiro, porque as pessoas adoram grandes narrativas que explicam tudo, e o complô junta a pluralidade dos fatos em um encadeamento em que tudo ganha sentido, mesmo que para isso seja preciso forçar os dados e arranjar os fatos. O complô dá ordem ao caos. Segundo, porque uma vez compartilhadas as grandes premissas da maquinação, as pessoas vão completando as lacunas e produzindo narrativas derivadas, fabricando elas mesmas suas próprias teorias da conspiração, algumas ainda mais radicais do que as matriciais, produzidas pelo partido ou movimento. Muita gente, em suma, se põe a cooperar para tornar a história plausível e indisputável. 

Um bom complô precisa antes de tudo de um inimigo com três características: precisa ser muito poderoso; precisa ser extremamente astuto, ardiloso, inteligente, em suma; precisa ser maligno. E, naturalmente, precisa de uma vítima, “nós”, que somos moralmente superiores ao inimigo, uma vez que a razão e a justiça estão do nosso lado, mas politicamente inferiores ao inimigo, em virtude da força que ele reúne, do tempo em que ele já está operando, do capital que ele controla, da forma insidiosa como que ele conseguiu se estabelecer e, naturalmente, do fato de que o Mal opera de forma incessante e sem respeitar limites. 

Grande parte do sucesso do nazismo, por exemplo, deve-se à capacidade de formulação e disseminação da mitologia do complô judaico universal contra os arianos e contra os interesses nacionais alemães. Assim, uma vez que as pessoas assimilaram as premissas básicas da conspiração judaica internacional, os fatos da realidade passaram a ser filtrados a partir das premissas assumidas: quando reforçavam a história, eram aumentados e exibidos como comprovação; se apontavam em outra direção, eram rejeitados como falsificação e desprezados. Incorporada a premissa do complô, todos os elementos da realidade, do passado, do presente e até do futuro, tudo se encaixa e ganha sentido. Foi deste modo que, empregando essa matriz fundamental, Hitler e o seu movimento social, o nazismo, conseguiram dar algum sentido à desesperadora situação econômica da Alemanha depois da Primeira Grande Guerra, mas também lograram explicar, mais adiante, a reação internacional de rejeição às barbaridades nazistas, justificando que é tudo obra da Internacional Judaica, aos quais se juntaram no conluio os ingleses e outros aliados, para atacar injustamente a Alemanha.

Os petistas, por exemplo, adotaram por anos uma teoria de que havia uma conspiração contra o PT e o povo, e a empregou como protocolo para lidar com os escândalos políticos relacionadas à corrupção. Nesse complô entra, claro, a mídia: é a chamada “conspiração editorial contra o PT”. Mas, como em todo conchavo que se respeita, outros atores poderosos tinham papéis importantes na trama conspiratória: as elites, a classe média, as elites brancas, o Judiciário, os banqueiros, os poderosos, e a mais temível de todas as figuras, “eles”.  Encaixados nesta narrativa, os escândalos políticos perdiam, retoricamente, grande parte do seu impacto, uma vez que a revelação dos fatos escandalosos podia ser explicada como resultado da maquinação dos inimigos do povo contra as virtudes do partido, a saber, a preferência pelos pobres e seus projetos de melhorar a vida da parte mais baixa da pirâmide social. Os erros do PT e dos seus quadros não faziam, naturalmente, parte da história.

Ninguém, no entanto, vence os Bolsonaros e o bolsonarismo no uso de narrativas persecutórias, a começar pela megateoria, que explica absolutamente tudo o que o governo faz ou deixa de fazer, que é a história do complô comunista universal. A sua origem é a mente nebulosa de Olavo de Carvalho, o diretor espiritual da família reinante, também ele líder de uma das facções políticas que convergiu para o bolsonarismo. Olavão sabe que a massa se move ou por amor ou por medo. E que, como ensinou Maquiavel, o medo (ou temor) é uma base mais confiável que o amor. Só que, na democracia, o medo do governante é perigoso e pouco eficaz. Ao contrário, o medo de uma ameaça tremenda e à porta deveria ser capaz de mover a massa na direção de uma liderança em condições de enfrentá-la. Assim, Olavão foi buscar no imaginário produzido por sua sua geração, em 45 anos de Guerra Fria, as fantasias persecutórias de que precisava para a sua história de assombração: há um complô comunista; ele é internacional; os comunistas já estão infiltrados em nossa sociedade e conquistaram as principais posições políticas, intelectuais e culturais; os comunistas são astutos, ardilosos e estão dominando as pessoas a partir dos seus corações e das suas mentes; os comunistas estão destruindo os valores autênticos e fundamentais da nossa sociedade que é cristã e que tem raízes assentadas em valores familiares.

O passo seguinte foi estender o alcance semântico da noção de “comunismo” de forma que incluísse também toda a esquerda e, pasmem, mesmo as pessoas que adotam posições liberais nas controvérsias morais. Assim, o comunismo não é mais apenas uma alternativa ao capitalismo no que se refere estritamente ao modo de produção econômica, como seria correto pensar, mas é sobretudo mentalidade, valores, atitudes, estilos de vida e preferências políticas. Quer políticas de bem-estar social ou de distribuição de renda? Comunista! Quer respeito a minorias e uma sociedade que assimila diferentes estilos de vida? Comunista! Quer uma separação nítida entre Igreja e Estado? Comunista! Defende que os papeis sociais, inclusive os de gênero, são uma construção social e não uma lei da natureza? Comunista! 

A premissa é ridícula e não resiste aos fatos, mas em comunicação política o bom senso e os dados frequentemente não são bem-vindos. A adoção da história de um complô comunista reflete um severo estágio de alucinação ou de fantasia mal-intencionada, mas funciona. Tanto é verdade que a narrativa prosperou rapidamente e foi incorporada pela massa de bolsonarista, mesmos por uma geração inteira que não tem qualquer memória da Guerra fria. E passou a funcionar como matriz básica das decisões, prioridades e declarações de Bolsonaro, a começar da sua seleção de ministros para a guerra contra o comunismo. 

Fora Paulo Guedes e Sergio Moro, por outras razões, todo o elenco do primeiro escalão de Bolsonaro foi selecionado com base na premissa conspiratória do cerco e da infiltração comunistas. Ernesto Araújo é o general que irá lutar contra o globalismo, o “marxismo cultural” e a dominação comunista da ONU, alinhando-nos estrategicamente ao lado de países livres como Afeganistão e Uzbesquistão. Damares Alves é a comandante das tropas que desmantelarão a epidemia decorrente da infecção de boa parte da população brasileira pela “ideologia de gênero” e pelos “direitos humanos”, que são evidentes mutações da cepa do vírus comunista. O major Abraham Weintraub foi destacado para neutralizar a infiltração comunista nas universidades, tratando os vermelhos a pão, água e chicote, além de “desideologizar” os currículos brasileiros a fim de recuperar as criancinhas de anos de “doutrina ideológica”. O General de Brigada Ricardo Salles, por sua vez, colocará tropas em solo para liquidar de vez a infiltração do marxismo ambiental. Já para resolver o problema da infiltração marxista na Cultura foi destacado o Almirante…. ops, pera. Não existe mais a pasta da Cultura. Neste caso, o mal foi erradicado pela raiz. 

A gente olha de fora e vê uma nau de insensatos, um governo composto por alucinados, delirantes, paranoicos. Mas aquilo tudo faz sentido se você aceitar as premissas fundamentais do complô comunista. Em toda parte, a mensagem do governo é esta: “Desculpem o transtorno, mas não podíamos deixar que o Brasil permanecesse dominado pelo comunismo, estamos tomando providências para conter a dominação ideológica e cultural dos vermelhos depois de termos tomados deles a hegemonia política”. Onde nós vemos um louco dizendo e fazendo disparates que nos cobrem de vergonha e perplexidade, o sujeito que adotou a ideia de que o Brasil e o mundo foram infiltrados pelos comunistas vê um trabalho duro e um esforço hercúleo e mal compreendido para nos salvar da ameaça vermelha. 

Cabe à família presidencial e ao guru presidencial alimentarem a narrativa. Esta semana mesmo, a conta de Jair Bolsonaro no Twitter informou à Nação que “na próxima quinta, membros do Foro de São Paulo, criado por Fidel Castro, Lula, FARC, entre outros partidos de esquerda e facções criminosas com objetivo de dominar a América Latina, se reúnem em Caracas-Venezuela para discutir seu Projeto de Poder Totalitário”. Isso foi tão importante para a imprensa internacional quanto a primeira Convenção Nacional da Terra Plana, ou o Foro de Olavão, que acontecerá em novembro, em São Paulo. Insignificante. Mas o bolsonarismo tratou a reunião como se fosse uma reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas às vésperas da Terceira Guerra Mundial.

A narrativa do complô comunista, contudo, não se restringe à escolha de gente do primeiro e segundo escalão, que mais se assemelham aos frequentadores do chá do Chapeleiro Louco de Alice no País das Maravilhas, mas orienta decretos e projetos legislativos do Executivo Federal, políticas públicas implementadas pelo governo e até eventuais ataques do presidente a funcionários do Estado no legítimo exercício das suas funções. 

Bolsonaro disse isso com todas as letras esta semana, para justificar a sua enésima atitude que os não aderentes às premissas da conjuração comunista consideram delírio, perda de tempo ou pura e simples estupidez: “Há décadas a esquerda se infiltrou em nossas instituições e passou a promover sua ideologia travestida de posicionamentos técnicos”. É o que dá sentido às justificativas extravagantes que o presidente dá de atos que a todo mundo parecem insanos, como o afastamento da responsável pela Gestão do Fundo Amazônia, do BNDES; o ataque ao Inpe por não gostar dos dados sobre o desmatamento no país; a extinção de vagas de especialistas no Conselho Nacional sobre Drogas. O argumento publicado pelo presidente é que todo órgão do Estado está “aparelhado”, todo técnico está a serviço de ONGs internacionais ou do Foro de S. Paulo, todo dado e opinião divergente do desejo e da crença da Nova Hegemonia é resultado de “viés ideológico”. Dessa forma o presidente processa a seleção dos dados, fatos e pessoas tendo como base exclusiva a matriz do onipresente complô comunistas: os dados que não lhes são convenientes são produzidos por comunistas, as pessoas que não estão automaticamente alinhadas à sua visão de mundo são comunistas, os fatos que não lhe agradam estão a serviço do comunismo. 

Neste quadro, apenas o anticomunismo não pode ser classificado como um desvio ideológico. Não, ideologia quem a têm são os comunistas, o bolsonarismo é a Revelação e a Cura disso tudo. O Brasil, em suma, está sendo governado por um presidente que crê piamente em uma teoria da conspiração que ele próprio ajudou a montar. E não riam, não, que a coisa só seria cômica se as consequências desse estado permanente de delírio persecutório não se demonstrassem tão trágicas. 

WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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