O antibolsonarismo em movimento

O antibolsonarismo em movimento
Cresce na sociedade a percepção de que Bolsonaro está longe de atender aos requisitos de líder da nação (Foto: Marcos Corrêa/PR)

 

Nas últimas semanas tenho notado e registrado aqui alguns fatos novos que indicam estar crescendo na sociedade a percepção de que Bolsonaro está longe de atender aos requisitos de líder da nação e de chefe do Estado brasileiro. Já falei de novos atores políticos, pessoas de muita influência digital que se mantiveram neutras ou afastadas da política, apesar da intensa polarização que continua intensa desde 2014, mas que resolveram que agora basta, o bolsonarismo ameaça nossas vidas e a paz social. Já tive a ocasião de mencionar a incessante sangria de dissidentes do bolsonarismo, que inclui de membros do governo e deputados e governadores eleitos no tsunami bolsonarista de 2018, a, enfim, ideólogos e formadores de opinião, que com a saída de Moro do governo encontraram um modo de ser antibolsonarista e continuar, ao mesmo tempo, antipetista. 

E, por fim, anotei aqui o surgimento de frentes e movimentos contra o bolsonarismo. Tanto de movimentos-manifestos que envolvem formadores de opinião, artistas, intelectuais e políticos profissionais – Estamos Juntos, o Basta!, e o Somos70% – como os movimentos de rua, apesar da pandemia, do Antifas, das torcidas organizadas contra o fascismo e, por fim, dos protestos que ecoam aqui o americano Vidas Negras Importam. 

Há muita coisa acontecendo ao mesmo tempo e todas convergem para uma rejeição resoluta e crescente do governo Bolsonaro e do movimento bolsonarista. Nesse sentido, foi mais uma semana animada, na qual destaco duas ou três coisas.

A primeira é o fato de que Sergio Moro colocou o bloco na rua e ocupa todas as oportunidades de dar entrevistas na imprensa nacional. Começou no domingo, com a Folha de S.Paulo e terminou a semana na rádio Gaúcha. No início da semana, Moro demonstrou simpatia pelos novos movimentos-manifestos antibolsonaristas e disponibilidade para se juntar a eles. No fim da semana afirmou literalmente que dentro do governo Bolsonaro “era um símbolo anticorrupção. Agora que eu saí, o governo não tem mais essa desculpa”. Na verdade, como se vê, autoestima inflada não é algo que lhe falte, mas o que Moro está fazendo de verdade é separando, para os seus apoiadores e para a parte da imprensa que o endossa, depois do divórcio, o que é seu e o que é de Bolsonaro. Para mim, Moro foi mais um símbolo de corrupção do Judiciário para fins políticos (ou “passei aqui no governo para pegar a minha recompensa”) do que um símbolo anticorrupção, mas o que ele está fazendo é, como se diz, tirando o corpo fora do bolsonarismo que agora cheira mal ao seu olfato e paladar, de repente profundamente sensíveis. Agora que saiu, Moro está se dando trabalho para tentar tirar do bolsonarismo os seguidores que ele havia levado quando juntou os trapos e a vida com Bolsonaro. Para os seus planos de carreira solo, garantir a existência do morismo separado do bolsonarismo é agora fundamental. 

Enquanto isso, o PT oscila. E vacila. Um vídeo do perfil Quebrando o Tabu circulou esta semana registrando o depoimento de várias pessoas comuns, falando do seu arrependimento por terem votado em Bolsonaro. As razões do ato de contrição são claras, tanto na crítica ao que o governo Bolsonaro se tornou quanto no que se refere à cegueira da adesão, mas à confirmação do arrependimento se segue a declaração de que, se soubessem o que sabem hoje, não votariam em Bolsonaro, mas tampouco no PT. O que só confirma a minha impressão de que as pessoas estão se desembaraçando mais facilmente do bolsonarismo que do antipetismo

Houve petistas importantes dizendo que se a pessoa deixa o bolsonarismo mas continua antipetista, então ela continua bolsonarista. O que é a pior atitude a se tomar, porque já é muito se essas pessoas abandonarem o bolsonarismo no momento mais grave da sua inflexão fascista. É melhor para o PT dar razões aos arrependidos do bolsonarismo para deixarem de ser antipetistas do que enxotá-los de volta às hostes filofascistas.

Um pouco mais séria foi a entrevista que a jornalista Miriam Leitão fez na Globo News no domingo à tarde com Fernando Henrique Cardoso, Ciro Gomes e Marina Silva. Três dos quatro mais importantes líderes políticos da esquerda e do centro. Em pauta, as novas mobilizações de uma frente ampla antibolsonarista. Lula, lastimavelmente, não estava lá. Uma falta extremamente notada.

FHC não lidera mais nem o seu próprio partido, retirado por Doria da sua área de influência, mas é uma autoridade moral de grande importância e um ator político altamente qualificado. Ouvindo-o, até deu saudade do que era ter uma pessoa inteligente na presidência. Ele próprio é relutante em assumir o papel que lhe caberia, de consciência moral da Nação, e tem falhado recorrentemente em cumprir esta função desde 2014. Mas ainda é símbolo de civilidade, lucidez e compreensão do país como uma Nação e não como um bordel de interesses e apetites. E fazia tempo que eu não via Ciro Gomes tão “presidencial”, papel, aliás, que lhe cai muito bem. Marina também esteve à altura como sempre. Foi, em suma, uma seção nostalgia e o reforço da sensação que a todos nós domina neste momento, a saber, de que não temos de um “adulto na sala” no momento em que o país mergulha no caos.

Mas Lula não estava lá. Não sei se Lula perdeu com isso, porque não consigo decifrar qual é a sua agenda para poder julgar se houve ou não perdas. Mas dentre os quatro mais importantes líderes de centro e esquerda no Brasil hoje, Lula é o único que, de fato, tem liderados e pode facilmente converter a sua liderança em um contingente importante de votos. E é difícil imaginar uma solução para esse xadrez sem ele. Nem Ciro nem Marina, e muito menos FHC, têm, isoladamente, votos populares o suficiente para o materializar em mandatos. Os dois primeiros têm partidos, mas não têm um movimento, quer dizer um contingente numericamente expressivo de pessoas engajadas e comprometidas, em bases mais ou menos permanentes, com uma causa e, sobretudo, com um líder. Por mais que Marina, por exemplo, sempre tenha sonhado com isso, sua Rede é cada vez mais um partido típico e menos um movimento. 

Além de Bolsonaro, hoje, no Brasil, apenas Lula dirige um partido-movimento e pode converter o apoio que tem em 20, 30% de votos. Somente o lulismo hoje é capaz de neutralizar o bolsonarismo em dimensão, participação e engajamento. Mas Lula reluta em colocar o seu time em campo para tal fim e tem lá as suas razões. Perde o Brasil. Pena.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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