O aceno literário entre caminhos pedregosos

O aceno literário entre caminhos pedregosos
(Arte Revista CULT)

 

Por Antônio do Canto Lopes

Ao dizer que sou formado em Letras Português, ouço logo que deve ser difícil dar aulas dessa disciplina: muitas regras, muito papel, muito tudo. Certas vezes, presencio reviradas de olhos discretas (ou não) pelo peso da memória do interlocutor ou condescendências: “deve ser barra, né?”. Sim, é. Não direi que é simples. Porém, o que me chama mais atenção em conversas cotidianas é quando sentencio: “sou professor de Literatura”. Silêncio. “Mas, isso, serve para quê?”, perguntam-me. “Bem… para ler, estudar a linguagem”. Um breve aceno de cabeça concordante seguido de “ah, sim”. É, a Literatura, talvez, tenha perdido seu prestígio. Ou, se limitou durante anos às paredes universitárias. Tal interrogação me faz viajar perante séculos de incerteza até os dias de hoje.

Em tempos brasileiros contemporâneos de caça aos professores, lembro-me da expulsão dos poetas na República de Platão. A semelhança se dá pela perturbação à ordem. Lembremos da ditadura militar não tão longínqua (por favor, sem revisionismos históricos). Nós, docentes, somos – novamente – o grande inimigo. Possuímos a palavra, pois a cada leitura inculcamos saberes aos leitores, nossos/nossas alunos/alunas. Temos o texto em mãos. Podemos desarrumar as normatizações, incitar o diálogo, causar rupturas em fake news. Somos perigosos.

Aliás, toda interpretação é feita a partir de uma dada posição social, de classe, institucional. Os textos não podem ser desvinculados de uma certa configuração ideológica, na proporção em que o que é dito depende de quem fala no texto e sua inscrição social e história. Senão, como ler na sala de aula O navio negreiro de Castro Alves de evidente perspectiva abolicionista, ou Vidas secas de Graciliano Ramos sem o debate político, ou Olhos d’água de Conceição Evaristo sem o turbilhão de questões sociais existentes na escrita da autora? Não nos cabe mais fincar raízes na literariedade compulsória, essa que aprisiona e privilegia as linhas internas da escrita. Não tomemos esse partido.

O período em que estamos imergidos é de certo cuidado, há um discurso regressivo de nacionalismo que interessa ao projeto de consolidação do Estado nacional em detrimento das identidades brasileiras plurais. Contudo, já vimos isso, não nos é surpresa. Como se sabe, as situações instáveis (historicamente e/ou politicamente) são lugares nos quais a Literatura costuma manifestar-se e onde, de todo modo, melhor se apresenta o sentido da sua ligação com o contemporâneo. Faz parte também do discurso literário, como agente cultural, o ponto de vista de denunciar infortúnios, anunciar decadências. Agora, mais uma vez, ele é ameaça, força de transgressão. Retomo, então, a indagação inicial: qual seria o propósito da Literatura? Ir além, ir entre. Ao meu ver, sobretudo, persistir e permanecer.

Antônio do Canto Lopes, 26,  é doutorando em Literatura na UFSC. Paraense no Sul, é apaixonado pelas andanças poéticas

 

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