O aborto, entre desacordos morais e intolerância

O aborto, entre desacordos morais e intolerância
Manifestação pela legalização do aborto em São Paulo, Praça Roosevelt, em 2018 (Foto: Roberto Parizotti)

 

Esta semana tivemos um debate público muito interessante sobre um tema de ética e política. Quando falo “debate” vocês poderiam achar que foi um dessas coisas reservadas à elite intelectual ou à militância, nada a ver com os nossos problemas políticos reais. Na verdade, o debate se deu ao redor de um enredo complicadíssimo, cheio de reviravoltas, com personagens de diferentes padrões morais e que incluiu sequências e atos que revelaram o pior da natureza humana.

Depois da saga de uma criança de 10 anos que, abusada sexualmente desde os seis pelo tio, termina grávida – e, com uma gestação de 23 semanas, tem que passar por humilhações, revelação do seu nome e cidade de origem, recusa de hospital ao cumprimento de autorização judicial ao aborto legal, ofensas, xingamento e assédio até conseguir a interrupção de gravidez a que tinha direito –, o Brasil foi dormir no domingo para acordar de ressaca moral.

Os conservadores porque no final das contas não conseguiram o seu intento e, tudo somado, receberam uma gigantesca reprovação social pelo procedimento dos seus militantes, que foram da revelação do nome da criança à exposição da vítima e ao assédio de manifestantes; justo ela que, mais do que qualquer outra pessoa envolvida, merecia a proteção e o amparo de todos. Mas os progressistas também acordaram de ressaca depois de uma vigília exaustiva, porque sentem o quanto o obscurantismo, a ignorância e o fanatismo vêm avançando no sombrio país da hegemonia bolsonarista.

Claro que estamos todos conscientes de que o tema do aborto é uma dessas questões ainda em aberto na maior parte das sociedades, mesmo naquelas em que a religião não tem mais qualquer predominância no contrato social regido pelo Estado. Mesmo nas mais liberais.

Em países como o nosso, a questão do aborto faz parte de um pequeno conjunto de temas que compõem os nossos desacordos morais permanentes. Quer dizer que, embora as posições estejam postas hoje com muita clareza e com suficiente coerência, ainda não se gerou consenso social suficiente sequer para que um lado seja claramente minoritário. Que fique claro: desacordos morais são legítimos. Significa que ambos os lados pensam ter razões moralmente fundadas para continuar considerando o que defendem como sendo o melhor para todos. E que, embora, no caso brasileiro, a elite cultural, iluminista e secularizada, tenda para um lado, a base da sociedade, de matriz mais religiosa, puxa para o outro.

Quando isso acontece, há que um lado tolerar o outro, desde que não se violem os combinados fundamentais de uma democracia liberal que estão assentados na Constituição. É justamente por isso que, para o gosto liberal, neste tema se avança mais por meio das intervenções do STF – como no caso do aborto dos anencéfalos –, que são guiadas por uma Carta liberal, do que por meio do Congresso Nacional, mais fortemente atravessado por forças sociais conservadoras.

Tolerar, entretanto, não anula os testes argumentativos – e assim voltamos à ideia de “debate público” com que começamos esta crônica – que sempre são feitas em momentos-chave como este, e que servem basicamente para que um dos lados lance um enunciado de princípios e verifique, com isso, o estado da opinião pública, a compactação ideológica dos que o apoiam e o nível de convicção do outro lado.

A tolerância tampouco anula o fato de que um lado, por mais densas que sejam as suas convicções e mais coerentes que elas sejam com as suas visões de mundo, não podem atropelar regras básicas e acordos fundamentais. O argumento de Dom Walmor Oliveira de Azevedo, o arcebispo de Belo Horizonte e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por exemplo, testa esses limites. Ele publicou em sua página no Facebook: “Lamentável presenciar aqueles que representam a Lei e o Estado com a missão de defender a vida, decidirem pela morte de uma criança de apenas cinco meses, cuja mãe é uma menina de dez anos. Dois crimes hediondos”.

É uma posição paradoxalmente tão imbuída de valoração moral quanto eticamente complicada, porque afinal diz para milhões de crianças abusadas sexualmente todos os dias dentro dos seus lares desde a mais tenra idade, neste país católico, que nós da Igreja não conseguimos protegê-las da violação dos seus corpos inocentes, da violência sobre seus espíritos, da demolição psíquica das suas pessoas. Não podemos aliviar-lhes em nada o suplício da existência, mas, em compensação, temos ainda dois fardos imensos que gostaríamos que elas carregassem. Uma vez engravidadas pela besta que violou as suas infâncias, exigimos que arrastem por todas as suas vidas as consequências da brutalidade sofrida na forma do filho dessa monstruosidade. Além disso, jogaremos sobre seus ombros a obrigação de manter até o fim uma gravidez que violenta seus corpos infantis e podem conduzi-las à morte ou à mutilação.

Ora, meus amigos, eu posso até ter a convicção de que toda a vida é sagrada desde a fecundação, mesmo a vida de um feto resultante de abuso sexual, mas exigir que alguém pague com o risco da própria vida e com o sacrifício da própria felicidade por uma convicção que é minha parece-me um monstruoso pecado de arrogância. Pessoalmente, admiro pessoas de grandes convicções desde que elas aceitem pagar pessoalmente o preço que for pelo que acreditam. Contudo, quando as convicções são minhas, mas quem paga por elas em sofrimento e indignidade são os outros, não há mais nada de admirável aí. Antes, é desumano e viola os combinados fundamentais de uma sociedade baseada em leis e direitos.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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