O 6, o 9 e o culto à ignorância

O 6, o 9 e o culto à ignorância
(Foto: Montvlov/Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de janeiro de 2021 é “perspectiva”.


Como muitos jovens deste tempo fraturado, entrei ainda muito novo em um curso universitário. Novo e ingênuo, como todo bom jovem, em busca das certezas que solidificariam meu mundo. Foi dramático, de certa forma, perceber de cara que em um curso de história tudo que efetivamente não me forneceriam eram certezas, mas sempre narrativas, versões, perspectivas. Hoje mais arrefecida, mas ainda muito quente na época, era uma velha piegas em torno da ideia de “pós-modernidade” que desembocava sempre nas “pós-verdades”, na impossibilidade da certeza. Era basicamente isso, só que dito na velha linguagem acadêmica que levava o debate a uma inutilidade incrível. Em suma, tive uma formação que sempre estabelecia a antípoda “verdade” e “invenção”, que no fim não faz sentido algum.

Entretanto, a questão das “perspectivas” foi o que efetivamente me influenciou e me afastou um pouco da velha ingenuidade. Primeiro perceber que há posições diferentes de onde se vê o mundo e, logo depois, que o culto a esse perspectivismo estava tomando o meu tempo – a era da rede social – de uma forma catastrófica. Sintetizo a questão fazendo referência a uma dessas imagens que correm sem freio pelas redes, onde, em um espaço aberto, um algarismo arábico está desenhado no chão, e em seus extremos há duas pessoas gritando: “é um 6” “é um 9”. É claro que decorre do fato de que, dependendo de onde se vê o símbolo ele possa se aparentar a um desses distintos números. E é claro também que tal imagem sempre vem seguida de um “culto ao perspectivismo”, de que há realidades diversas, que nenhum dos dois está errado, pois se trata da perspectiva de cada um.

Ora, é justamente aí que está fundado o culto à ignorância do qual nossa sociedade padece mais do que nunca. Esse culto à ignorância nem é tanto pelo “prazer” em não saber, mas pela ilusão – propiciada de forma esmagadora pelas redes sociais – de que se sabe. Isto é, pela ilusão que se é conhecedor de algum aspecto da vida, da ciência, sem nunca se ter estudado nada sobre o assunto. O conhecimento fast food: viu, já sabe. Assim, nada mais lógico do que estar sempre com o perspectivismo a tiracolo, porque a qualquer questionamento do fundamento da opinião, pode-se jogar a velha sacada do 6 e do 9, de que é somente uma perspectiva diferente e não um erro.

Mas vejamos algo importante para não cair de barriga nesse tipo de perspectivismo. O mais valioso que aprendi em um curso de Ciências Humanas nem foi a existência e o respeito às formas de ver, mas justamente o ato de problematizá-las, entender que tudo o que temos é resultado de processos históricos mais ou menos longos, e que tudo que temos, portanto, tem um referencial e só pode ser apreendido com alguma clareza a partir dele. Assim, o 6 ou o 9 não está ali entre os dois sujeitos aletoriamente, há um referencial para ele. Se, por exemplo, se tratar de um estacionamento numerado, na vaga anterior estará escrito um 5 ou um 8, e na posterior um 7 ou um 10. Somente com base nos referenciais que circulam as coisas do mundo e podemos fugir do simplismo de considerar tudo como uma “questão de opinião”. Há de se dizer de onde vem, com quais outras coisas se trava relação, com quais oposições foi contrastado. Quem “acha”, não sabe. O conhecimento das coisas se dá pelo adensamento do olhar, pelo conflito das visões, pela listagem dos elementos relacionais, e não pelo culto ao perspectivismo raso.

É preciso reafirmar que a pluralidade de ideias, o pluralismo como um todo deve ser sempre festejado. O que não se pode é cair na ignorância por esporte. Pretensão de saber sem referencial.

Welligton Costa Borges, 22, é
mestrando em História pela UFPI.
Mora na zona rural de Vera Mendes – PI,
semiárido brasileiro. A aridez do seu
mundo não impediu o amor pelos livros.

 

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