Nós e os aparelhos: sobre hábitos e prazeres na era da automação humana

Nós e os aparelhos: sobre hábitos e prazeres na era da automação humana
Quando alguém perde um celular, é como se perdesse o órgão físico que lhe permite conexão com o mundo (Arte: Andreia Freire/Revista CULT)

 

A máquina de fotografar mudou a história do olhar humano. Na sequência, o cinema nos ensinou a ver o mundo de um modo diferente. A televisão concentrou nosso olhar dentro da pequena tela doméstica, uma espécie de prisão para os espíritos mais inquietos, um conforto visual para outros menos preocupados. O computador ajudou a concentrar nossos corpos diante de uma tela com possibilidades infinitas, ou aparentemente infinitas. Os tablets hipnotizaram muita gente com a novidade do touchpower. Finalmente, os telefones celulares concentraram todas essas possibilidades facilitando tanto a relação com o mundo visual quanto com o virtual que, também por isso, passaram a valer como um órgão do corpo humano.

Isso é provado empiricamente no momento em que alguém perde um celular. É como se esse alguém perdesse o órgão físico que lhe permite conexão com o mundo. Se alguém ainda especula sobre o “sexto sentido”, o celular é o mais forte candidato a ocupar o lugar desse saber além dos sentidos corporais clássicos.

Os aparatos técnicos controlam nossa relação com o mundo visual há muito tempo. Poderíamos contar a história do olho através das tecnologias. E desde que o virtual surgiu, esses aparelhos que conjugam todas essas possibilidades controlam o todo de nossas percepções. Até aí nada demais. Já sabemos disso, muitos livros já foram escritos sobre. Eu mesma sou autora de alguns, tais como Olho de vidro e Sociedade fissurada, que discutem diversos aspectos desde questões ético-políticas da percepção até vícios cultivados massivamente.

Já sabemos disso. E, agora? Se sabemos, por que não mudamos aquilo que já conhecemos e aprendemos a criticar tão bem? Essa não é uma pergunta retórica, feita apenas por fazer. É uma pergunta que, levada a sério, nos confronta com nossos próprios limites. Ora, não mudamos nossa relação com esses objetos porque eles criam hábitos. E não há nada mais forte em nossas vidas do que nossos hábitos. Os hábitos nos dão segurança e senso de pertencimento, o conforto do que é conhecido para nós.

O que chamamos de consumismo é, na verdade, um hábito. Não abandonamos os mais diversos produtos que nos fazem mal ou que fazem mal à natureza ou a alguém, não deixamos de lado o cigarro, as comidas industrializadas, o carro ou o sedentarismo porque eles têm a força do hábito. Os hábitos nos dão prazer porque poupam nosso empenho e esforço em uma sociedade que já exige muito de nossos corpos.

Facilidade

Mas os hábitos implicam também o nexo entre o corpo e a mente. E quando entram em cena os esforços mentais, tudo o que queremos é ser poupados. Somos devotos do deus da inércia. O celular vem a ser um parte do ritual desse culto, pois nos poupa empenho e esforço. E nos dá a sensação de potencialidades abertas. Ele é o melhor exemplo de pequena potencialidade literalmente ao alcance da mão que nos livra de muitos desempenhos que seriam sofríveis se tivéssemos que nos esforçar por eles a todo momento. Estamos vendo tudo, toda informação em potencial, todos os nexos em potencial, todos os contatos possíveis, o tempo todo e, além de tudo, tudo tão efêmero e superficial. Nos regozijamos com a superficialidade porque, de fato, interpretamos que ela é o que tem que ser. Somos signatários dessa vida instantânea, imediata, sem densidade. Nos habituamos à superfície porque não conhecemos nada melhor do que ela.

A sensação de facilidade é da ordem da compensação. E é algo como felicidade o que sentimos em dobro quando recebemos algo que nos parece ser “grátis”. O prazer do grátis é o prazer infantil da criança com um brinquedo recebido de surpresa pelo qual não precisou se empenhar. Daí o prazer dos presentes e a alegria do que parece milagre.

O que é grátis é interpretado como o que não tem preço. Por isso, também as redes sociais crescem e aparecem. Elas dão muitas sensações, boas ou más, não importa. As próprias sensações sem ter que pagar nada, são como dádivas.  As redes sociais trabalham para produzir a sensação de que tudo ficou mais fácil, de que temos potencialidades no mundo social e de que, portanto podemos ser felizes, ou já somos felizes pelo simples fato de estarmos nas redes. Além de tudo, essas redes são grátis. O Instagram é um grande exemplo da felicidade pela facilidade com que se pode usá-lo e com que se pode compreender seu conteúdo sem precisar ler quase nada. A compreensão de uma imagem simples que não exige nenhum esforço, nem mesmo o de prestar atenção, produz uma estranha sensação de compensação, de felicidade e logo se torna uma hábito. Não há hábito que não facilite ou dê a impressão de que facilitou a vida.

As redes dão a sensação do almoço grátis, mesmo que ele não exista. Já falei sobre isso em outros artigos, sobre os funcionários virtuais que somos. Funcionários enganados, pois pensavam que eram convidados pra uma festa grátis. Na verdade vamos todos trabalhar como plantonistas, programadores, produtores de conteúdo, seguranças, animadores etc. Todos funcionários das redes sem direitos trabalhistas. Nos acostumamos a servir sem exigir nada em troca. E pensando bem, o que será que realmente ganhamos? Esse é um cálculo que precisaria ser feito. Afinal, o Facebook ou qualquer outra rede social é como a política, se você não sabe o que está fazendo com ele, ele sabe o que está fazendo com você.

Mas voltando ao hábito. Os vencedores das eleições de 2018 usaram propaganda via WhatsApp. Eles simplesmente se infiltraram no hábito que é usar esse aplicativo e mudaram ou intensificaram aspectos da mentalidade das pessoas. Um aplicativo é uma máquina de orientar hábitos. A quantidade de desinformação e fake news acessível de graça diariamente por esse aplicativo deve nos levar a pensar. A desinformação e as fake news se tornaram um hábito. O jornal nacional faz o mesmo há décadas, mas o WhatsApp consegue moldar uma mentalidade ainda mais rápido porque exige muito menos dela.

A indústria de aplicativos cresce espantosamente, porque qualquer aplicativo se apresenta como um facilitador da vida e a maioria deles é gratuito. Além de tudo, aplicativos são controladores de hábitos. O controle dá muito trabalho. Do mesmo modo, o autocontrole que é onde os aplicativos atuam. Seres humanos terceirizaram o autocontrole há muito tempo com leis, remédios e agora, aplicativos e se alguém aparece oferecendo controle de graça e sem muita punição, não há quem pense em reclamar.

O prazer de não sentir desprazer

Sabemos que a conquista da autonomia não é fácil. Em uma sociedade que aprendeu a viver sem prazer, no princípio de desempenho, no esforço e na obediência transformadas em maneira de sobreviver, o ato de ser controlado se tornou uma espécie de novo prazer. O prazer de não sentir desprazer algum.  

Então temos que aprender a lidar com esse novo prazer construído pelos novos hábitos. Um prazer na total lassidão. O prazer de ser autômato tem sido demonstrado ao longo das épocas por meio das submissões, adequações e obediências voluntárias. É uma forma civilizada de masoquismo. É o que restou a toda uma civilização docilizada que renunciou a toda forma de esforço enquanto, ao mesmo tempo, vive escravizada. Uma civilização de aparatos, aparelhos, redes sociais e aplicativos capazes de robotizar sem dor.

Podemos nos perguntar por um preço a ser pago, mas essas questões acima nos mostram que estamos para além de responsabilidades e culpas. Quem Pode ser responsabilizado ou culpabilizado por um hábito? Somos programados para não nos importarmos com isso.

Não perceber o prazer é o prazer que resta em tempos de tanto desprazer.


Leia a coluna de Marcia Tiburi toda quarta-feira no site da CULT

(2) Comentários

  1. Perfeito, Marcia! A cultura do imediatismo fomenta essa necessidade de redes sociais, pois tudo parece mais fácil e instantâneo à partir destas. Tínhamos uma variedade de objetos que executavam distintas funções, hoje em dia temos aplicativos que realizam as mesmas funções em um único aparelho móvel. As relações humanas também tornaram-se ‘coisificadas’. Quando o indivíduo deixa de existir nas redes sociais, deixa de existir também em ciclos sociais. A existência torna-se quase uma reminiscência… “Por onde anda fulano que nunca mais postou nada na rede social X?”. Sabemos, criticamos e não mudamos também pelo motivo de que não queremos deixar de existir, já que há uma obrigação de autoafirmação constante.

  2. Gosto muito da Márcia, ela consegue com esse texto nos mostrar uma outra forma de autocrítica, a pensar o que estamos fazendo de nossas vidas.

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