Nikolas Ferreira, a transfobia e a “diafonofobia”

Nikolas Ferreira, a transfobia e a “diafonofobia”
(Foto: Reprodução)

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No dia 8 de março, o deputado bolsonarista Nikolas Ferreira ocupou três minutos no plenário da Câmara dos Deputados para uma performance política. Fantasiou-se de peruca amarela, fez um gracejo sobre ser esse o único modo de ter lugar de fala, e apresentou o mote de seu discurso: “as mulheres estão perdendo o seu espaço para homens que se sentem mulheres”.

Como se as mulheres precisassem de alguém como Nikolas para interpretar o que pensam, e muito menos para defendê-las dos “homens que se sentem mulheres”. Não, Nikolas não falava para mulheres nem sobre mulheres, mas para os marmanjos de sua base e para hostilizar a agenda trans.

Depois disso, veio o combo que se espera das performances bolsonaristas, que consistiu, no caso, em um discurso sobre o cerco realizado pela minoria opressora (teria sido acusado de transfobia por ter, há dois anos, parabenizado apenas “as mulheres XX”); outro discurso de defesa intransigente da liberdade nos moldes liberal-bolsonaristas; revirou então o lodo do pânico moral contra as mulheres trans (os “homens de dois metros no banheiro da sua filha”); e terminou com um louvor à versão tradicionalista da mulher: feminina, inspirada em personagens bíblicos, parideira, pura e por trás dos grandes homens, como se deve.

Um afago nos conservadores, uma pitada de “defesa da sua liberdade, cidadão”, para mostrar que é liberal e, por fim, chegamos ao objetivo: deboche e caricatura para enfurecer a esquerda e os progressistas, deixar as pessoas trans espumando de raiva e levar ao delírio a seita preconceituosa e reacionária para a qual a performance foi feita.

O deputado queria a fúria dos progressistas, o orgulhoso apoio dos reacionários e, claro, visibilidade. Conseguiu tudo. Com menos de 3 minutos de discurso, só se falou dele no Dia Internacional da Mulher. Tudo somado, foram três minutos extremamente produtivos de trabalho de um deputado que foi eleito justamente para esta tarefa, e mais nada.

Conhecemos o modelo de captura da atenção pública e da pauta do debate nacional por meio de uma guerra verbal e performática permanente, baseada em ofensas, desrespeitos e deboche, focada em temas socialmente sensíveis e moralmente em disputa. Com o palco deixado vazio pelo seu principal protagonista nos últimos quatro anos, muitos tentarão elevar o tom para herdar a audiência e a fan base do bolsonarismo.

É bom que fique claro, para começo de conversa, que pessoas com o perfil de Nikolas nem mesmo deveriam ser eleitas. Não por serem de direita e conservadores, que são posições legítimas na democracia, mas porque as suas contribuições para o parlamento e o povo brasileiro devem ser esperadas tão somente no nível da provocação, da ofensa e do insulto. Nada mais. Já passamos por isso quando escolhemos como presidente um mau palhaço e um palhaço do mal, sem tino nem noção do que era governar, que transformou este país justamente num infeliz picadeiro.

Essa constatação, contudo, não nos deve levar a perder de vista dois fatos elementares.

Primeiro, Nikolas Ferreira foi eleito por um milhão e meio de mineiros que o escolheram sabendo exatamente quem era e justamente por que ele é o que é. O sistema político pode até cassar o representante, mas continuarão os representados e eles são muitos, tantos, e não só não desaparecerão, como, vejam só, têm democraticamente o direito de existir. Os bolsonaristas desse tipo não vão ser retirados da sala da democracia, não vão desaparecer, não vão ser anulados, do mesmo jeito que os petistas não foram removidos para o quinto dos infernos, como os bolsonaristas preconizavam em 2019.

Nesse sentido, me deixa impressionado, no Brasil de hoje, que a esquerda (ainda mais a esquerda identitária) se tenha convencido de que ganhou as eleições passadas. Não ganhou. Venceu, no máximo, a eleição presidencial; o Legislativo foi vencido pelo bolsonarismo e pela direita fisiológica. Lula sabe muito bem disso, mas parece que os identitários de combate não se dão conta do fato. E gritam pela cassação do mandato do deputado como se naquele plenário da Câmara a maioria não tivesse sido eleita pela mesma base de Nikolas Ferreira.

Segundo, o sucesso de discursos como esse se dá porque há grupos do outro lado entregando justamente o mundo de intolerância e autoritarismo que o deputado descreve para os seus com o propósito de suscitar o pânico que os mantém unidos e mobilizados. Também do lado de lá ninguém larga a mão de ninguém, justamente para desafiar o autoritarismo e o grito de “___fobia é crime”.

Sabemos que se trata de uma performance colaborativa, embora antagônica, em que ambos os lados ganham o que vão buscar. Todo santo dia um rufião que se cacifa humilhando minorias, uns babacas preconceituosos e um fundamentalista postam-se diante de plataformas digitais. Fazem o mesmo, do outro lado, uns esquerdistas desses de mandar prender diante de qualquer contrariedade. Uns saem à cata dos outros.

Quando se encontram, cada um obtém o que queria: uma quota importante da atenção pública, uma chance de sinalizar para todo mundo quão virtuosos e moralmente superiores são, um cancelamento digital para mobilizar a turba e fazer com que vicie em sangue e humilhação dos maus, e aquela sensação decisiva de “vamos ficar juntos senão eles nos devoram”.

Na semana passada, a esquerda que manda prender queria na cadeia uma mãe de criança do Ensino Fundamental, por racista, e, depois, avisou para umas universitárias desmioladas que fizeram um vídeo humilhando uma colega de 40 anos, isso depois de as exporem para sempre nas redes digitais, que preconceito por idade é crime.

Esta semana, o Centro Acadêmico de Ciências Sociais da UFMG pediu à Universidade que uma docente com expressiva carreira como pesquisadora e professora, Mara Telles, fosse demitida por transfobia. O crime da professora teria sido criticar, num post do Twitter, o uso da expressão “pessoas que menstruam” em lugar de “mulheres”, num programa público de distribuição de absorventes. Por conta disso, o CA de seu departamento decretou, por algum tipo desconhecido de inferência, que não usar o vocabulário preferido pelos trans “normaliza” e “alimenta” preconceitos e discriminações contra a população trans em geral e é um dos “fatores diretamente responsáveis pela banalização da transfobia no Brasil”.

Por crime tão horrendo, que seria facilmente cometido por quase toda a população brasileira não atualizada quanto ao novo vocabulário político obrigatório, uma professora, que além de tudo é esquerdista e feminista dessas de manual, deve ser demitida. Para o bem de…. para o bem de quem mesmo? Dos Nikolas Ferreira, imagino.

Do jeito que as coisas caminham, alguém vai acabar tendo que propor que a fobia de divergência, o horror da discordância, o agastamento ante a contrariedade se tornem crimes no Brasil. Discordância é diafonia (διαφωνία) em grego, fica aí a sugestão para um novo tipo penal, embora diafonofobia resulte uma palavra feia, pois do jeito que vai ninguém mais aguenta.

Depois, essas mesmas pessoas dizem que não entendem como tipos como Nikolas Ferreira representem tanta gente, pois é muito claro que ele está no Congresso justamente para representar a possibilidade de um desafio impune à patrulha identitária e às suas expedições punitivas.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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