Nem profecia, nem dogma

Nem profecia, nem dogma
(Arte Andreia Freire)

 

A cada crise econômica mundial de vulto, Vossa Majestade, a “ortodoxia” econômica, deixa-se flagrar com as vergonhas de fora (junto com boa parte da “heterodoxia”, deve-se acrescentar). Presos à ideologia do progresso, que projeta a existência das formações sociais capitalistas em tempos imemoriais, tomando-as como resultado definitivo do evolver histórico; e vítimas de um aleijão apologético, que os exime de perscrutar os fundamentos da dinâmica de acumulação de capital, proeminentes representantes do pensamento econômico convencional lançam-se a embaraçosas acrobacias para dissimular seu espanto. Infelizmente sua nudez é rapidamente esquecida, tamanho o barulho que fazem com seus modelos explicativos, cujos simplórios argumentos enfeitados de sofisticarias matemáticas são repetidos como mantras em centros de ensino e reproduzidos à exaustão pelos grandes meios de comunicação. Os desígnios do Deus-mercado são inescrutáveis, porém ainda assim arrisca-se que as crises são decorrentes de “fatores exógenos”, em particular de alguma trapalhada estatal; ou então resultantes da carência ou da deficiência dos instrumentos de regulação e de intervenção do Estado.

Essa ortodoxia econômica, em suas versões ultraliberais, tão em voga, cultua como solução de todos os males uma “livre-concorrência” hipostasiada e eivada de preceitos morais. O hiato entre tal noção e a realidade não conduz seus proponentes a intuir que sua própria concepção é oriunda de uma dinâmica social contraditória e antagônica, que engendra concentração e centralização de capitais (a nefanda “monopolização”), e por conseguinte desigualdade de renda e de propriedade. Igualmente ignoram eles que não só a emergência mas também o desenvolvimento do “mercado” moderno dependem do Estado, a forma política do capital. Em cínicos devaneios, tais porta-vozes não se enxergam como ideólogos; ao contrário, consideram-se revolucionários, portadores do novo: o capitalismo realmente existente será substituído pelo verdadeiro reino do mercado e da meritocracia, o “éden dos direitos naturais do homem”, onde o que impera “é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham”.

Desde muito jovem Marx se opôs duramente a esse tipo de perspectiva doutrinária e demagógica. Assim, em carta dirigida a Arnold Ruge, em setembro de 1843, ele assevera que “nós não antecipamos dogmaticamente o mundo de amanhã, mas somente queremos chegar ao novo mundo por meio da crítica do antigo”. Posição essa que ressoará décadas mais tarde, no posfácio à segunda edição de O capital, quando afirma a recusa em “fornecer receitas para a cozinha do futuro”, ou quando, já no final de sua vida, de modo sardônico dizia que “tudo o que sei é que não sou marxista”.

O procedimento crítico marxiano, por conseguinte, parte das relações sociais existentes e perscruta suas determinações, seu processo de emergência e suas tendências internas de desenvolvimento, o que permite desvelar seus limites históricos. Desse modo, do seio da realidade posta desentranha sua negatividade essencial. Com isso revelam-se também os potenciais e o campo de possibilidades efetivas que constituem a atualidade, que não se submete a esquematismos teleológicos. Ao dedicar boa parte de sua vida a essas tarefas, Marx logrou identificar e apreender conceitualmente importantes aspectos das formações sociais capitalistas e decisivas tendências de seu evolver histórico.

Em primeiro lugar, Marx reconhece não o consumo, mas a produção de riqueza abstrata (valor) em escala ampliada como fundamento, finalidade e motor da dinâmica econômica moderna. Desse modo, é inerente a essa dinâmica a concentração de capital e a sua centralização (a “expropriação de capitalistas por capitalistas” no interior do processo concorrencial), que tem como uma de suas principais alavancas o desenvolvimento do sistema de crédito e dos mercados financeiros, e que está na base da constituição de sociedades por ações, cartéis, trustes etc. Ademais, reside aí o imperativo de se aumentar a escala da produção, de se ampliar a “mobilidade” do capital (em formas reais e financeiras), de se buscarem novos mercados, de se produzirem novas necessidades, novas mercadorias e novos usos às já existentes, expandindo a forma capital para os quatro cantos do planeta.

O capital apresenta-se, assim, como o “valor que se valoriza” em escala global, e que busca dominar de modo cada vez mais pleno as condições de sua autovalorização, o que passa pela subordinação das diversas esferas da vida social. Assim, afirma-se como uma forma social totalizante e totalitária, que não admite competidores. Para tanto, porém, o capital necessita materializar-se em meios de produção (“trabalho morto”), que transferem valor às mercadorias finais (sendo por isso chamado por Marx de “capital constante”), e adquirir a mercadoria força de trabalho, que ao ser posta em movimento não só enseja a referida transferência de valor, mas acrescenta novo valor a tais mercadorias, a “mais-valia” (sendo por isso designado “capital variável”). Logo, se por sua forma o capital se impõe, não obstante sua substância, o trabalho abstrato, permanece-lhe exterior. Desse modo, essa figura vampiresca, que se vivifica ao sugar o “trabalho vivo”, revela-se um falso sujeito, “cego” e “automático”, que ao mesmo tempo incorpora e nega a força de trabalho, impedindo os trabalhadores de se apropriar do produto integral de seu labor. É assim uma relação social inerentemente antagônica, que em sua sede de enriquecimento não reconhece outra diferença entre a produção de uma bomba ou de um alimento que não seja a expectativa de lucratividade, e descura de eventuais limites ambientais e humanos para sua reprodução.

Sem ter consciência disso, e premido pela concorrência, ao capitalista individual existem duas formas básicas, em geral interconectadas, de efetivar os desígnios do capital: a intensificação do trabalho e a ampliação da jornada de trabalho (a extração de “mais-valia absoluta”) e a redução dos custos de reprodução da força de trabalho por meio da revolução científica, tecnológica e organizacional da produção (a extração de “mais-valia relativa”). Esta última, sobretudo com a automação produtiva, engendra uma elevação na proporção entre meios de produção e força de trabalho (o aumento da “composição orgânica” do capital), ou o alijamento do trabalho vivo da produção, de modo relativo e, em certas circunstâncias, absoluto. Desdobra-se assim a contradição imanente à forma capital: a fonte da valorização é mitigada, o que se expressa na tendência à queda da taxa média de lucro (a relação entre a mais-valia produzida e o capital total), a estrela guia dos capitalistas.

Por conseguinte, se as crises econômicas são sempre singulares e possuem distintos momentos – ruptura nas cadeias de pagamento; estancamento comercial; superprodução de mercadorias em relação à demanda solvável; desproporção entre setores da produção etc. –, elas são, em essência, crises de sobreacumulação de capital, desdobramentos de suas contradições internas. Acrescente-se a isso o fato de que, em contextos críticos para a continuidade da acumulação de capital, os empresários tendem a realizar uma “fuga para frente” em direção aos mercados financeiros, de modo a aferir ganhos especulativos ou a ocultar sua insolvência. Engendra-se assim uma espiral de endividamento e uma pletora de títulos financeiros sem fundamento real (“capital fictício”), que não obstante comprometem a futura produção de valor de modo irrealizável, e redundam em crises financeiras.

Mesmo com essa exposição excessivamente sumária, nota-se que as análises marxianas adquirem interesse diante de fenômenos, contemporâneos e correlacionados, como o do expressivo desemprego na esteira da chamada revolução microeletrônica (incluindo aí a robótica, a telemática, a nanotecnologia, entre outras inovações); as baixas taxas globais de acumulação e de lucro; a brutal concentração de renda e de propriedade nas últimas décadas em escala mundial; a transnacionalização da produção e as sucessivas ondas de conglomeração que reúnem gigantes da indústria, do comércio e das finanças; os “booms” dos mercados financeiros, sobretudo secundários; as crises ambientais; a destruição das estruturas de bem-estar social; o acirramento militarista e da indústria da segurança e do encarceramento; a exacerbação dos antagonismos sociais; o pulular de bolhas financeiras; e a sucessão de crises econômicas. Nesse contexto, o Estado tem sido crescentemente mobilizado para catapultar a extração de mais-valia absoluta e relativa e alimentar a dinâmica de acumulação, além de impedir o seu colapso quando da eclosão de crises, tarefas que cada vez mais superam suas possibilidades. Afinal, seu poder de intervenção consiste basicamente na arrecadação tributária, que por sua vez depende da acumulação prévia de capital; na privatização de ativos e serviços estatais, cujos estoques são finitos; na “socialização das perdas” e na diminuição dos encargos que recaem sobre o grande capital, que restringem a arrecadação; e na produção de capital fictício. Em grande medida, por conseguinte, nesse quadro de acumulação claudicante o Estado apenas tende a protelar a catástrofe, e mesmo essa capacidade parece enfrentar obstáculos insuperáveis.

Além dos limites da atual dinâmica da acumulação de capital, evidencia-se, assim, a inextricável unidade entre civilização capitalista e barbárie, ou entre progresso material e regressão social sob a égide do capital. Por outro lado, saltam à vista a impotência e, mesmo, a abjeção do reformismo, que, ao reduzir os horizontes de possibilidade de ação à minimização dos sintomas dessa forma social patológica, acaba por reforçá-la e torná-la mais virulenta. Ao contrário, a partir da perspectiva da crítica marxiana, essa teia de irracionalidade, violência e reificação universal, que põe e pressupõe relações sociais heterônomas, hierárquicas, utilitárias e de exploração, bem como toda sorte de opressão de cunho patriarcal, racial, religioso, de gênero etc., tal teia, dizíamos, só será superada quando os indivíduos livremente socializados assumirem o controle consciente e planejado do processo de produção material e espiritual de suas vidas, como indicava Marx ao final da seção do fetichismo da mercadoria, logo no primeiro capítulo de O capital.


GUSTAVO MOURA é doutor em Sociologia pela USP e professor do Departamento de Economia da UFES

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