Não vote antes de acordar

Não vote antes de acordar
(Arte Revista CULT)

 

No campos de uma universidade, vários jovens conversavam, no intervalo das aulas. De repente o pânico. Todos começam a correr. Morcegos esvoaçam ensandecidos em plena luz do dia apavorando os presentes. Eu corro como todo mundo, sem saber para onde ir. Quero conectar esse sonho com um texto de Theodor Adorno chamado “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista” que lia ontem antes de dormir. É muito apropriado para o momento:

“Pois, assim como as pessoas não acreditam que os judeus sejam o diabo, tampouco acreditam realmente no líder; não se identificam com ele, mas fingem essa identificação. Fazem cena de seu próprio entusiasmo. E assim participam na representação do líder. Provavelmente é o pressentimento do caráter fictício de sua própria “psicologia de massas” o que faz das massas fascistas tão desapiedadas, duras e inacessíveis: se se detivessem por um momento a pensar, todo o “show” viria abaixo e seriam presas do pânico.”

Gostaria de pedir ao leitor que pare para pensar nesse trecho. Que o releia várias vezes se achar que deve. Adorno fala de uma teatralidade que convence pela simples teatralidade. Podemos traduzir essa ideia pelo ato de “fazer tipo”, que todos conhecemos. Uma performance, um parecer o que não se é, apenas para poder fazer parte da massa que também teatraliza, que também faz tipo.

Isso quer dizer que essa massa age conforme a moda. Quando falamos de onda fascista, é a uma moda a que nos referimos. Infelizmente modas fazem muito efeito em política. Pois o fascismo virou moda e atingiu pessoas que não imaginávamos que pudesse atingir. Mas a quem ele atingiu? A quem a propaganda fascista, essa que se vale do discurso de ódio, realmente falou? Em que corações e mentes ela realmente foi capaz de entrar?

No extremo da solidão social e política, a pessoa mais abandonada, o cidadão mais ordinário, aquele que não tem existência social e política, o invisível, o não-reconhecido, aquele que não é lembrado senão na hora do voto, e lembrado apenas como um voto, encontra sua chance de aparecer. E por que ele quer aparecer? Por que existir foi reduzido a aparecer. É como se existir fosse “ser percebido” (como dizia Berkeley há séculos). Logo, quem não é percebido não existe. O esforço, portanto, é o de ser percebido na sociedade na qual a imagem é o maior capital.

Aquele que também tem o desejo de existir, o que ele no fundo sabe que se dá pela expressão, por sua inscrição como sujeito do pensamento e da ação no mundo, aquele que também quer existir e, no entanto, não é percebido, descobre algo como uma igreja neopentecostal. Pronto, como num ato mágico, ele está inserido. Livre do pavor da solidão que traz a sensação de inexistência.

Se não a igreja, ele pode descobrir uma ideologia à qual ele pode aderir sem esforço algum. Basta dizer sim. Não precisa de diploma, de carta de recomendação, de boas notas na escola, de família rica, de emprego, de oportunidade na vida, nada. Ele será aceito com toda a sua miséria, com toda a opressão que ele não quer ver, porque essa verdade faz sofrer. A ideologia não. A ideologia apaga todo o sofrimento e conduz ao gozo.

Basta dizer sim. Enquanto muitas mulheres e homens dizem “Ele não”, multidões dizem um sim repetitivo e simples a um líder fascista que promete o caos e a destruição. O inconsciente não reconhece a negação, já dizia Freud. Quem diz sim tem uma perspectiva imediata de existir e ser alguém. Ao unir-se ao líder autoritário apenas imitando-o.

E imitá-lo é fácil, basta repetir clichês que estão há muito tempo sendo vendidos no imaginário. Por meio dessa imitação uma pessoa compra a sensação de que faz parte de algo maior. Quem não quer fazer parte de algo maior? A maior parte das pessoas tem o desejo de fazer parte de algo maior. Ou de pelo menor parecer que está fazendo parte de algo maior. Ou de simplesmente ter o aval de mais gente para parecer que se é alguém maior. Narcismo? Desespero? É o desejo de ter audiência que caracteriza o usuário das redes sociais em um mundo em que o contato entre as pessoas está adoecido. Vítima desse capital espetacular digital é o que todos somos hoje e somos algozes uns dos outros.

Bolsonaro, depois de Trump

Tendo em vista o recente apoio que nosso Hitler tropical recebeu de um membro da Ku Klux Klan, tendo em vista o trabalho dos americanos que elegeram Trump na campanha desse mesmo ídolo das massas fascistas, precisamos pensar o que será de nós.

Assim como candidatos fascistóides surfaram na onda de Bolsonaro para se eleger (vide o caso de alguns governadores que não teriam a menor chance e de deputados mil que saíram do nada), Bolsonaro surfa na onda de Trump. Em 2016, observando o nosso golpe e a eleição de Trump, falei que o tapete vermelho estava posto para Bolsonaro se tornar presidente do Brasil. Muita gente me dizia que Bolsonaro não tinha a menor chance. Até hoje eu tento entender por que as pessoas não se esforçam por levar a sério isso que se apresenta como banalidade, como brincadeira, como impossível. Escrevi sobre as relações entre estética e política em Ridículo político e falei muito do candidato que mais uma vez está mexendo com os afetos mais perversos dos brasileiros por meio de um padrão teatral, performático, ao qual chamei de ridículo político. Não é tarde para lembrar que, assim como Obama combinava com Lula, Trump combina com Bolsonaro. E essa semelhança não é uma mera coincidência.

Entre aqueles que percebem a gravidade da situação (lembro de Jessé Souza, nosso maior sociólogo, emocionado ao mencionar esse banho de sangue que se anuncia) e aqueles que querem ver o banho de sangue, há uma horda de indecisos, despreocupados ou “isentões”, que se abstêm de votar, que votam em branco ou anulam. A gravidade da situação agora se concentra no jogo dos votos. Fake news são a tática dos que não têm projeto, como Bolsonaro, mas apelar a um projeto é um questão racional demais nesse momento. A impressão que tenho é de que muitos tentam convencer pessoas a não fazerem mal a si mesmas, no extremo, a não cometerem suicídio por meio do voto. Mas quem será capaz de controlar as próprias pulsões quando tem a chance de extravasá-las? Quando alguém não sabe o que faz, também prefere não ficar sabendo, senão não será mais capaz de “gozar” livremente. A razão só atrapalha e é fácil sentir raiva e até ódio daquilo que atrapalha.

Eu venho há anos falando desse fascismo difuso e em estado de prontidão na cultura brasileira, desse “sono dogmático” no qual são mergulhadas as  massas “ignorantificadas” pelas horas e horas de exposição à televisão e seus pensamentos prontos e até imbecilizantes. Hoje, além de tudo, as pessoas, crianças inclusive, são expostas a horas de uso de internet, de redes sociais que impedem o pensamento. Mas pouca gente escuta esse tipo de crítica, porque a crítica atrapalha. Eu sou vítima de ódio de muita gente, de fake news e ameaças de todo tipo. Eu resisto, porque a consciência me faz acordar a cada dia e escrever e lutar e seguir com a vida.

Eu sigo também com meu complexo de Cassandra, a personagem das narrativas míticas que tinha a maldição de fazer previsões nas quais ninguém acreditava. Por isso se calava. Eu não me calo porque resistir é essencial.

Hoje, vejo muitas pessoas a pedir votos contra o candidato fascista. Inclusive eu me esforço por convencer aquelas pessoas da família – gente até mesmo doce, gente que não faria mal a ninguém – entregues à moda de votar em fascistas apenas porque não “gostam” da esquerda. Pedir um voto, nesse momento, equivale a um pedido de reflexão. Nesse momento, todos devem parar para pensar antes de votar.

E pensar agora, significa ficar atento ao pesadelo coletivo e, por isso, não se deve votar antes de acordar.


> Leia a coluna de Marcia Tiburi todas as quartas no site da CULT

(7) Comentários

  1. Não adianta tentar distorcer a realidade dos fatos e imputar à grande maioria de eleitores que eles são fanáticos idiotas, e vcs, comunistas, os iluminados intelectuais. Aprenda a respeitar democraticamente o desejo da maioria sem dar esses chiliques ridículos. Seu discurso é tão bom que nem o povo do Rio de Janeiro te quis. Aceita que dói menos.

  2. A julgar pela característica que antecipa a instalação dos regimes totalitaristas, dois pilares, a saber: o medo social (desemprego, insegurança, etc.); a supremacia do ponto de vista, da ideologia, em detrimento ao que diz respeito à todos (exemplo a pauta massiva em educação sendo ocupada pela propaganda ou campanha de gênero, ao passo que a qualidade da educação pública nos diversos níveis é péssima, haja vista que a educação de qualidade é direito do cidadão, diz respeito à todos, ao “hetero” e ao “homo”), deveria no mínimo fazer com que considerassemos “facismo” e “comunismo” no contexto atual, e a partir de então, o leitor, o eleitor, tirasse suas conclusões.

  3. Estamos todos adormecidos em berço esplendido. O Voto é obrigatório, só isso gera um mal estar na civilização. Voto como parte do meu engajamento na luta contra o fascismo. Mas sinto-me adormecido

  4. Que beleza de texto, que poder de articulação e que imensa coerência! Um “complexo de Cassandra” altamente produtivo justamente porque Márcia Tiburi antevê, continua vendo e não se cala nunca. E resiste, tb assim. E nos ensina, de tantas maneiras, a tb resistir. Agradeço demais a ela e à Cult, por bancarem o muito que podem fazer nessa luta fundamental.

  5. Márcia Tiburi sempre lúcida em suas colocações e que nos ajudam a entender e resistir sempre!

  6. Faz reflectir. Infelizmente o ódio (provoca cegueira). O preconceito religioso e político dão origem ao “pensamento ideológico, e, este à Barbárie. Oxa lá muita gente leia o seu texto em tempo útil. Um abraço.

  7. Texto magnificentíssimo! Que bom que você existe e resiste!! Para mim é uma honra e um privilégio ter acesso a um texto tão rico como esse e conseguir entendê-lo. Admiro sua luta e me espelho nela. Obrigada

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