MORALINA FUNK

MORALINA FUNK

Este artigo saiu na Revista Cult no final do ano passado. Acho que é feminista, crítico e atual.

A nova moral da contemporânea Indústria Cultural da Pornografia

A afirmação adorniana de que após Auschwitz toda cultura é lixo não perde sua atualidade. Se de um lado, a frase implica que a cultura não vale mais nada, de outro quer dizer que “lixo” é a melhor categoria explicativa da cultura enquanto “aquilo que se rejeita”. Mas vem significar também que cultura é a experiência do que sobra para os indivíduos levando em conta as condições socio-econômicas e políticas marcada pela divisão de classes, de trabalho, de sexos, da própria educação dirigida de maneira diferente a pobres e ricos.

A partir da elevação do lixo à categoria de análise, podemos com tranquilidade ecológica (aquela que faz a separação dos descartáveis por categorias) partir para uma brevíssima investigação do que que se há de nomear como “moralina funk”, a performance corporal-sonora  que se apresenta como o ópio do povo de nosso tempo. Muito já se escreveu sobre o fenômeno que merece atenção filosófica urgente desde que tornou-se a “cultura” que resta para uma grande camada da população de classes menos favorecidas econômica e politicamente. Muitos afirmam que “o funk carioca também é cultura”, mas pouco comentam sobre seu sentido enquanto capital cultural justamente porque seu único capital implica uma contradição: pobreza material e espiritual. Ou seja, capital nenhum. Na ausência deste capital sobressai o que resta aos marginalizados. Eles descobriram o valor daquilo mesmo que lhes resta. Eis o capital sexual.

A performance da moralina funk depende deste capital sexual. Explorado ele é a única mercadoria da consciência e do corpo coisificado. Seu paradoxo é parecer libertário quando, na verdade, é a nova moral.

Pornografia moralizante

Produto dos mais interessantes da sempre moralizante Indústria Cultural da Pornografia, a esperteza do funk carioca é transformar em regra aquilo que foi, de modo irretocável, chamado por seus adeptos pela categoria do “proibidão”. A versão da coisa que não é para todo mundo. A fórmula do funk é tão imbatível quanto a lei do estupro das histórias do Marquês de Sade. É o barulho como poder, ou melhor, violência. Nenhum ouvido escapa da moralina funk na forma de disfarçadas ladainhas em que as mesmas velhas “verdades” sexistas expoem-se, como não poderia deixar de ser, pornograficamente. Mandamento sagrado da performance é que ninguém ouse imputar marasmo ao tão cultuado quanto profanado Deus Sexo.

Não existe uso autorizado da pornografia, pois a regra de sua moral é a clandestinidade. Daí a função do proibidão na economia política do funk. A história da pornografia oscila entre ser o outro lado da lei e ser apenas outra lei. Foi isso o que fez seu sucesso político em sociedades autoritárias contra o princípio publicitário que lhe deu origem. É o que está dado em sua letra: porno (prostituta) e grafia (escrita) define, na origem, a mulher que pode ser vendida. E que, para ser vendida, precisa ser exposta. A pornografia é, assim, uma espécie de exposição gráfica da mercadoria humana. Não é errado dizer que a lógica que transforma tudo em mercadoria tem em seu cerne na “prostitutabilidade” de todas as coisas. Nada mais simples de entender em um mundo de pessoas confundidas com coisas.

Que a pornografia esteja ao alcance dos olhos, dos ouvidos, de todos os sentidos, exposta em todos os lugares, significa apenas que a regra do ocultamento foi transgredida. Mas implica também sua efetivação como publicidade universal. Isso explica porque ela não choca mais. Na performance do funk carioca ela é altamente aceita em escala social. Seja pela pulsão, seja pela acomodação, se o imoral torna-se suportável é porque ele tomou o lugar da moral. É a nova moral.

A pornografia de nossos dias é tão bárbara quanto a romana pornocracia com a diferença que não temos mais nada que se possa chamar de política em um mundo comandado por regras meramente econômicas. Daí que todo funkeiro ou seu empresário saibam que o seu negócio é bom pra todo mundo.

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