Moedor

Moedor
(Arte Revista CULT)

 

Leio o noticiário ouvindo música e, por acaso (ou não?), quando lia sobre a festa dos médicos ambientada numa favela, Mano Brown gritou no meu ouvido: “se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal/ por menos de um real, minha chance era pouca/ mas se eu fosse aquele muleque de toca/ que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca” (“Capítulo 4 Versículo 3”, ouça aí). Tiro o fone e uma frase começa a me perseguir: este país vai pegar fogo, este país vai pegar fogo.

Este país vai pegar fogo. Não vai demorar. Não apenas o fogo literal que já nos assombra, desde as florestas que sempre nos pareceram tão distantes. Vai pegar fogo socialmente. Sempre foi quente, sim, mais para uns do que para outros (os Racionais são a prova disso), mas há algo novo – pior – no ar.

É muito difícil acreditar que venha desse governo qualquer medida que evite a colisão entre uma população que empobrece, é humilhada em todas as esferas e só vê portas se fecharem e, de outro lado, uma elite cada vez mais brutal e cheia de desfaçatez na defesa de seus interesses e mesquinharias. Não seria nem será uma tarefa fácil para nenhum governo, mas é simplesmente impossível para um governo que só serve para destruir: destrói quando quer, com gosto, e destrói quando não quer, por incompetência. 

Por isso andam armados até os dentes, blindados e desconfiados, por isso atacam o tempo todo, por isso falam besteiras que ocupam as manchetes, por isso vão precisar mais e mais de muros altos, blindagens, seguranças, armas. Estava pensando aqui nessa festa dos médicos com ambientação de favela, com direito a “gatos” nos postes e espetinhos servidos, claro, por negros (já viram? haja estômago!), lembrava do texto do poeta Fabiano Calixto sobre Bacurau (que ainda não assisti), do menino que foi chicoteado no mercado em São Paulo, do procurador de Justiça de MG que acha R$ 24 mil um salário humilhante, um “miserê” (já ouviram? haja estômago!), do governador do Rio que dá pulinhos para comemorar a barbárie, enquanto nossas “autoridades” gastam seu tempo preocupadas em controlar os livros e gibis que as pessoas querem ler, apenas porque não há mais nada que possam ou queiram fazer pela população.

Lembrava também das muitas notícias sobre a destruição da Educação, dos pesquisadores que terão suas carreiras abortadas, dos alunos que serão arrastados de volta para a impossibilidade de mudar suas vidas e a de suas famílias, dos muitos amigos, nas mais diversas profissões, que estão adoecendo e buscando outras formas de sobreviver, inventando socorros materiais e espirituais. Ainda ouço aqui o grito da psicóloga Helenice Rocha: “nossos consultórios e demais serviços de saúde têm recebido pacientes cada vez mais doentes. Depressão, pânico, doenças psicossomáticas, suicidas em potencial. São crianças, jovens, mulheres e homens adultos e idosos que nos procuram cada vez mais desalentados, mais enlouquecidos ou mais adoentados”.

Impossível não perceber a forma como tudo isso se soma para enterrar qualquer esperança de que a situação melhore, de que o país corrija suas injustiças, no médio ou no longo prazo, porque não se trata mais da destruição do que existia (direitos trabalhistas, previdência e assistência sociais), mas das próprias condições de existência de tudo que, numa sociedade capitalista, ameniza os efeitos destrutivos da lógica inerente ao capital. Tudo aquilo que, sabemos, é pouco, mas pode garantir a sobrevida da maioria da população.

Está difícil pensar em “sociedade livre, justa e solidária” por aqui, como diz nossa combalida Constituição. Pelo contrário! Até porque, do outro lado dos muros, grades e vidros blindados, o lado da classe média alta e das elites, cada uma à sua maneira, vai vir mais ataque, como sempre vem quando seus privilégios são ameaçados ou minimamente atingidos. Como diz o procurador do “miserê de R$ 24 mil”, “não sou acostumado com tanta limitação”. E não é apenas ele que pensa assim. E não é apenas ele que vai fazer de tudo para sair do “miserê”. Pisando na cabeça dos outros, claro, como sempre.

Mas é justamente aí que entram minhas dúvidas, é aí que começo a ver o país pegar fogo, porque não acredito que, desta vez, os “outros” vão servir a própria cabeça na bandeja, assim, em paz. Acho que não. Acho que já passou esse momento. Um dos sentidos da eleição de Bolsonaro, a meu ver, é de que grande parte da população deu sua última cartada dentro das regras do jogo, na base do “vamos ver no que dá”, arriscando tudo porque não via mais qualquer sentido nos arranjos do sistema. O esgarçamento do sistema democrático já era percebido, pelos comentaristas da tevê, há muito tempo, mas o povo não via apenas esgarçamento. Na verdade, nunca viu democracia alguma, muito antes da Lava-Jato, da Vaza-Jato, do Jornal Nacional e dos seus “especialistas”. Bolsonaro, em grande parte, é um filhote dessa última cartada – o pior filhote. Mas hoje, poucos meses depois, é fácil ouvir por aí, da boca de muitos eleitores (excluída a parcela mais doentia do seu eleitorado), que não deu nem dará certo. O jogo acabou. Não sabemos o que virá daí, mas receio que seja a aposta em algo ainda pior.

Nossa elite pode até organizar festas, como de costume, fazendo graça com a desgraça da imensa maioria da população, até mesmo com quartinhos em que os convidados, com patês na barriga e champanhe na cabeça, brinquem de chicotear “figurantes” negros e negras, mas o investimento com segurança privada para garantir sua festinha cresce a cada ano. Precisam estar muito bem cercados para curtir o que acumulam. Eles riem, mas sabem disso. Sabem que, do outro lado do muro, está cada vez mais quente. Já dá pra ver as chamas. E talvez não adiante subir um pouco mais o muro ou colocar mais gelo no uísque.

TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP, autor de Alguns rastros (Martelo) e Íntimo desabrigo (Alpharrabio/Dobradura)

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