Missiva de lava-alma

Missiva de lava-alma

 

Logo após a proclamação do resultado da eleição para presidente da República pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 30 de outubro passado, as mãos sem luvas dos horizontes republicanos e populares, agora mais desanuviados, antes bastante indignados, retomaram, já no vitorioso café da manhã subsequente, uma missiva rascunhada desde 2016, para, finalmente, arrematarem-na, após aberrante e sofrido transcurso. Para os registros da história, a versão final ficou assim – abre aspa:

MEIA VOLTA, VOLVER!
Recado dos horizontes republicanos e populares
aos adeptos do extremismo político, da ditadura e da tortura

Urnas indevassáveis não dispensam franqueza. Nos próximos dois meses de transição de governo, inexiste necessidade de ênfase à exigência de cada dia. Educado e peremptório, o resultado da votação asseverara: esvaziem, por favor, as gavetas civis do Estado e retornem aos quartéis, casernas e clubes militares, bem como às delegacias, empresas, parlamentos, púlpitos, residências e, no máximo, a posições atrás de telas digitais. A aceitação prévia de participação no jogo político sob regras constitucionais vigentes subtrai legitimidade e moral ao bloqueio de estradas e à ocupação de praças e ruas no país. Acima e abaixo das mesas e nos armários, levem o que restar de teorias conspiratórias (civis ou fardadas) e de negacionismo: eles desgastaram a paciência das instituições republicanas e contribuíram para a morte de milhares de inocentes, antes, durante e depois da pandemia de Covid-19.

Chega de atiçar, com aspirações demasiadas de poder, pulsões mesquinhas e desprezíveis da população vulnerabilizada por ondas de desinformação e mentira.

Desde o início de 2019, o Brasil viveu tempos intensos de uma vergonha sem fim, na esteira dos 21 anos de descalabro ditatorial, em passado recente – tudo aos olhos do mundo, que não perdoa: “Pária!”. O termo abrange, por arrastão involuntário e veemente, milhões de pessoas inconformadas e/ou insatisfeitas com o estado de coisas. Ricamente colorido em diversidade peculiar, o país não aboliu a monarquia e seu cariz feudalista para ser marginal na história.

A visibilidade mediática (de massa e interativa) estampou o quanto vocês ficaram exasperados e entristecidos. Nossos respeitos.

Ficamos igualmente desolados – e não por um ou dois dias. Ficamos desolados nos últimos quatro a seis anos de acachapante regressão histórica, social, política, cultural, educacional, científica e ética. Respeitem-nos – o rastro de ensurdecedora ruína no último quadriênio foi chancelado pelo submundo: desde a invasão madeireira e garimpeira em terras amazônicas e ancestrais até a miséria crescente sob pontes e viadutos nas grandes cidades; desde a criminosa desidratação do investimento na área da saúde, com atraso injustificado no processo vacinatório em 2020, até a movimentação internacionalmente desproporcional nos cemitérios de todo o país (para ficar no fio básico de um extenso novelo).

Nunca mais sejam lúdicos ante aspirações de justiça democrática: no tempo devido, elas também “dão o bote” (por assim dizer), de forma civilizada, via instituições republicanas. Agora que o capítulo nacional mais tosco da República foi repaginado por ares inconfundíveis e com a galhardia de um sistema democrático fortalecido, os estratos mais responsáveis e esclarecidos, progressistas ou mesmo conservadores das Forças Armadas, do chamado “mercado”, das esferas industrial e comercial, da imprensa, do mundo religioso e do pragmatismo político têm uma única preocupação (aqui expressa em riqueza figurada): como se livrar de vocês.

Quando de novo à casa, revejam cadernos com antigas anotações. A Constituição Federal de 1988 reza que as Forças Armadas não representam o Brasil político. A ordenação cívica estabelecida destina a elas, exponencialmente, a defesa da integridade e da soberania do país. Em especial, militares bolsonaristas, ancorados no apoio fundamentalista de civis de extrema direita, não representam a totalidade das Forças Armadas; e, junto com sem-fardas delirantes, enodoaram a imagem da instituição.

No jargão corrente, essa distinção diz: a questão não é sobre as Forças Armadas propriamente ditas. Na história nacional pós-1988, elas têm rachaduras político-institucionais normais, nas quais se observam vertentes (explícitas ou reservadas) de comando e subalternas contrárias a ímpetos de golpe. Ao longo do quadriênio, as Forças Armadas, como totalidade institucional, se negaram, por pressão de contrapoderes e circunstâncias e/ou por prudência, a abraçar aventuras autocráticas do populismo ultradireitista. Ao fim e ao cabo, a questão, ao menos agora, é sobre a bolsonarização – periculosa e sabotadora – que atravessa as Forças Armadas e inúmeros setores da sociedade.

Seja como for, nunca mais esqueçam – todos, de militares extremistas a milicianos: quem representa o Brasil político é o povo civil, e ele precisa de Forças Armadas valoradas, que cumpram as funções constitucionais de protegê-lo de eventuais agressões externas.

Sem ódio ou ressentimento, mas não sem o desgosto lavado em extraordinário sufrágio – foram milhares de óbitos desnecessários em 2020 e 2021 –, apenas lembramos: depois da ineficácia do fomento empresarial (insano e serpentino) à ocupação das estradas, ruas e praças, retornem, com serenidade, aos quartéis, casernas e clubes militares, bem como às delegacias, empresas, púlpitos, parlamentos e residências. O rigor republicano do sufrágio solicita que, no caso das Forças Armadas, seja consumada a letra da Constituição Federal:

  1. defender a nação exclusivamente no locus de Estado [o da guerra] onde elas realizam o seu melhor e o que nenhuma outra instância oficial cumpre;
  2. contribuir para a garantia da independência harmônica entre os três Poderes; e, como continua o Artigo 142 da Carta:
  3. assegurar o cumprimento da lei e da ordem, por iniciativa – se e somente se – de qualquer dos Poderes.

Uma vez justamente constitucional, essa rota de desempenho e realizações receberá elogios de todo o povo democrático, dentro e fora das Forças Armadas.

Contra essa direção, somam disfunção republicana, por exemplo, factoides mediáticos como os do relatório parainstitucional sobre a segurança das urnas eletrônicas (matéria da Justiça Eleitoral). A pretexto de protagonismo político constitucionalmente discutível, fustigam, mais que dissolvem, nas ressalvas e entrelinhas, a instabilidade social no país.

Para que vocês sobrevivam de forma reacomodada ao mundo da disputa política sã, estão todos convidados a abandonar a escabrosidade histórica (e, por que não, antropológica) de uma extrema direita tão escandalosa em rusticidade voluntária; e a somarem esforços no caminho da reconstrução do país, nos próximos anos. A bem dizer, essa reconstrução já foi desencadeada – ali onde vocês não alcançam – na noite de 30 de outubro passado, após o resultado do pleito. Sublinhe-se: ali onde vocês não alcançam – fecha aspa.

Assim que alcançaram esse estágio da missiva, os próprios horizontes republicanos e populares não deixaram de emitir um novo e sonoro “Chega!”, e passaram a ponderar sobre a assinatura do documento.

A expressão “Horizontes republicanos e populares” foi preterida. Apesar de simpático e próspero, o tônus poético do léxico proparoxítono, além de estender a tarja, não caía bem em chancela de carta franca. Por sua vez, “Brasil democrático”, embora adequado, requereria justificativa. Em 1964, certos segmentos “pela democracia”, de tão perversa esta – a fazer eco com demônios de torturadores –, pavimentaram golpe de farda. Em 2016, civis, pintados ou não, com e sem mandato, lograram façanha similar, nas entranhas dos Poderes. Seria melhor não entregar a importante linha da assinatura a ambiguidades desavisadas. A vagueza de “Brasil do futuro” tampouco ajudava. A questão crucial da missiva se ligava aos dias correntes, sem diferimento.

Do bojo dessas alternativas, eis que um insight indicou que o signatário ideal precisava envolver legitimidade concreta e impessoal – “Povo brasileiro”, e assim ficou. Logo abaixo, o orgulho selou: “Mais de 60 milhões de votos”.

Na esteira dessa soberania, as mãos sem luvas dos horizontes democráticos e populares, ainda não satisfeitas, cravaram, como assinantes consortes, mais duas vozes robustas: “Constituição Federal” e – dada a gravidade da regressão histórica em jogo –, “Declaração Universal dos Direitos do Homem”.

Para referência geral, dataram o trunfo, 30 de outubro de 2022, com um adendo inesperado: “Viva a redemocratização do Brasil!”.

No mais, com seco profissionalismo (como quem precisava terminar rápido uma tarefa), despacharam a missiva de lava-alma aos destinatários, sem desejo ou expectativa de resposta.

* Fonte: Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

Eugênio Trivinho é Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.


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