Micropolíticas Feministas

Micropolíticas Feministas

Convidei Angela Donini para escrever para os leitores desse blog. Olhem que bela reflexão. A imagem é uma fotografia da incrível artista Luiza Prado.

Micropolíticas Feministas

Angela Donini (Professora de filosofia – UNIRIO)

Essa história vem do desejo de falar de algo que tem a ver com uma ética de vida articulada à prática cotidiana, micropolíticas feministas, decisões que diferem do movimento de autoimagem, de valorização do ego, de valorização da segurança. Não se trata de um investimento, de uma zona de negociação com os códigos colonizadores. Podemos nos perguntar: Qual é o risco? Quais espaços são convocados com essa experimentação? Vai melhorar a vida? Não existem respostas para estas questões. A liberdade não pode ser um investimento. A liberdade é uma aventura sem fim, na qual arriscamos as nossas vidas por alguns momentos de algo para além das palavras, para além dos pensamentos ou dos sentimentos.

Sinto que minha inspiração surge a partir do encontro com escritoras chicanas (como Glória Anzaldua, por exemplo), que nos mobilizaram com o processo de fazer poesia, de trazer nossas escritas desde processos colaborativos. Glória vai dizer que a interação vem a partir da percepção de que escrever é uma atividade colaborativa, comunal, não feita sob um teto todo seu, mas como um ato informado e sustentado pelas escritas com as quais as pessoas interagem e pelos séculos de história cultural que fervem sob as peles.

As conexões que foram se enredando no decorrer da constituição de espaços feministas que marcam o corpo estão ligadas à instauração de micropolíticas de afeto. São as decisões sobre a comida, sobre a relação com os restos, com a decisão de não sustentar os afetos por meio de historinhas românticas, mas afirmar o desejo pela invenção de encontros mais lúcidos e menos tristes e silenciadores, da busca por outros lugares para o sexo e para as experimentações corporais.

Faz muito sentido que esta prática esteja vinculada a gestos de desestabilização da centralidade do “eu”. Trata-se de retirar a centralidade da experiência individual e identitária, ressignificar os encontros a partir do conjunto de forças que se produz no “entre” relacional, do que é cartografado, de como deixamos as coisas adentrarem nosso corpo e ao mesmo tempo entrar em composição com as forças do fora. Como desobstruir os nódulos que impedem a passagem? Como descartar cada pequeno traço de amor pelo poder?

A imposição colonial de gênero atravessa também questões de ecologia, economia, relações com o mundo espiritual, com os saberes, com as práticas cotidianas. Trata-se de decisões que implicam em uma cosmologia do cuidado ou em processos de destruição. Neste sentido, podemos considerar também os processos de subjetivação, os modos como compomos nossas cartografias, como caminhamos pela liberação, por um movimento de abrir mão do lugar de centralidade e seguirmos um processo curativo que se conecta com as forças do fora.

Fotografia de Luiza Prado

A escolha que faço está relacionada com os caminhos que procuro tecer para desobstruir o fluxo vital nos pontos onde ele se encontra bloqueado por forças que, ao meu ver, acabam incidindo nos processos de criação, até que chegam à paralisia do corpo e da vida.

A proposta é pensarmos nossas corporeidades como passagens de visões e audições, que nos são sequestradas o tempo todo pelo modo de operar do mundo prático, ritmado, enrijecido, de perspectiva colonizadora, branca, ocidental. Aqui, por exemplo, podemos pensar em todo o projeto de dança ocidental, que coloca as danças afro e indígenas, na maioria das vezes, como folclore. Não só a dança, mas todo o projeto das políticas de arte, que retiram os objetos de seus contextos e, à revelia dos processos de vida, objetificam e os inserem em uma dimensão fetichista e esvaziada de sentidos.

Trata-se, portanto, de uma provocação ao modo capitalista colonial de agenciar os fluxos, em termos de sua estratégia relacionada à espacialização dos corpos. Uma busca por rupturas com os procedimentos imagéticos que atuam nos traços da memória colonizada e, com isso, não remeter mais a linguagem corporal a objetos enumeráveis e combináveis, tampouco a vozes emissoras, mas produzir deslocamentos que processem limites imanentes à ancestralidade que nos atravessa, e que a colonização oprime e silencia.

As imersões em outras cosmologias seriam procedimentos necessários para sairmos da nossa centralidade, daquilo que é criar a partir das nossas próprias imagens, dos nossos próprios contornos corporais, daquilo que olhamos.

Temos caminhos muito potentes que, ao meu ver, sempre se cruzaram e que, de alguma maneira, precisamos adentrar no entendimento comum do porque se cruzam e, ao mesmo tempo, parece que há um movimento de puxar pra cindir.

No sentido mais forte de trabalharmos no manejo cotidiano de nos depararmos com o tema da cisão, (a quem ela interessa?) e de procurar gestos curativos que acabem com esta cisão, essa escrita aborda o corpo como campo de batalha, no sentido curativo da cisão entre dentro e fora, forma e força, visível e invisível.

Para fazer operações, procedimentos, agenciamentos que convoquem as dimensões anestesiadas de nossas vidas, é preciso que busquemos as implicações e os acoplamentos mais potentes de abertura de mundos. Obviamente, não creio que encontraremos no mundo tal qual esta dada a formatação, as regras, mas sim acionar outros modos de ver, de cheirar, de respirar, de sentir, como um trajeto avesso ao conforto, à uma performance ou um texto que chegarão a partir de uma iluminação de esforços centrados nos estudos, mas completamente desconectados dos percursos da sensação.

Os vários enredamentos mobilizados por feminismos de diferentes momentos e experimentações nos possibilitam propor micropolíticas feministas, porque as coisas vão girando, girando e tocando nossas moléculas.

Atravessar as barreiras do visível e mexer com nosso equilíbrio, com nosso jeito de sustentar o corpo, sustentar o discurso. Parece que há uma torção necessária quando questionamos o amor romântico, os ataques machistas cotidianos (que não são só a violência explicita física, mas todos os modos como esse mecanismo invade a vida…) e ao mesmo tempo vemos tantas figuras dissidentes movendo esses muros da colonização. Sinto que é possível respirar.

Precisamos seguir. Não por filiação, mas por aliança. Ir até onde pensamento e corpo habitam juntos a carne que vibra e que atualiza um gesto descolonial cotidiano das amarras que a rigidez e as exigências de respostas programadas nos fazem zumbis, nos paralisam, nos conservam, para descobrir o que de fato é adentrar e viver as forças.

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