Memórias negras redesenham a vida

Memórias negras redesenham a vida

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de novembro de 2021 é “a arte e a educação como meios para combater o racismo”


Um longo tempo está sendo explorado. Por este exercício de recuperar a memória, busco lembranças, afetos e, acima de tudo, repensar a vida a partir da escrita e do pensamento. Porque reconhecer-me negra foi, desde sempre, uma condição de temor. Nada fácil enfrentar os comentários maliciosos sobre a cor da pele, os lábios grossos e o cabelo não liso, caracteres que demarcam nossa negritude como algo comum. Acreditada que o tempo mudaria as coisas. Mas não!

De fato, minha formação familiar sempre rejeitou a ideia de uma ancestralidade negra. Para as quatro meninas e um menino, restou buscar recursos desse apagamento pela insistência em alisar nossos cabelos, embranquecer (com relacionamentos interétnicos como condição) gerações de filhos e netos, em demonizar práticas religiosas, ou mesmo negar a existência do racismo cotidiano. A instrução familiar foi eficiente ao implantar tais agruras, talvez com o objetivo de preservar-se do embate, assimilando o caquético discurso reinante.

Entender o que foi para minha mãe apagar toda e qualquer referência à nossa negritude é parte de minha atual reflexão. A começar pelos cabelos alisados com ferro de passar roupa, pois dizia ela que assim o fazia em meninas ricas, quando ela trabalhava como “doméstica”.

Sinto, há muito tempo que o diálogo sobre o racismo nos faltou. Mulheres negras atravessadas pelo racismo, mas que em nenhum momento souberam reconhecer sua negritude. Embora a cor latente, essa consciência parecia não ser determinante em nossas vidas.

Lembro-me com carinho da minha vovó Jorgina, benzedeira e rezadeira respeitada na comunidade, que tinha por hábito “receber” pessoas em nossa casa. Tantas gerações foram atendidas em pequenos rituais de benzedura, simpatias, na elaboração de compostos de ervas. Além de conhecer muito bem plantas e chás, sabiamente elaborava porções de álcool para “fumentação” ou óleos de palminha para diversas enfermidades. Hoje percebo que seus saberes e práticas demonstravam uma herança marcada pela ancestralidade africana.

Foi com ela que aprendemos a tecer, coser e costurar panos ou sobras para confeccionar uma colcha que seria usada por várias gerações. Era preciso criar, inventar ou reelaborar o que não tínhamos acesso. O que em nós habitava era algo que não sabíamos reconhecer. Criávamos espaços de resistência, espaços imaginários, lugares de pura criação artística. A arte desde sempre me habitava!

Há implicações nessa estética de vida, que está em devir quando encontra elementos substancialmente afetivos, mas ainda colonizados pela formação enquanto sujeito negro. Mesmo na universidade, a formação em arte não escapou desse colonialismo. Portanto, o corpo que aqui escreve é coletivo e individual ao mesmo tempo; corpo negro tomado pela tentativa de descolonizar-se. Um rasgo. Um vir a ser incessante.

A prática educativa em arte com grupos terapêuticos na saúde mental no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) fez perceber que mulheres negras apresentavam experiências de vida muito parecidas, arranjos sociais em que estavam colocadas como mães e avós reduzidas ao subemprego, a precárias condições de saúde, à violência doméstica ou urbana e uma tendência ao adoecimento mental a partir desses condicionantes.

Um espaço regido pela tentativa de superar o estigma da loucura também pode ser capaz de estigmatizar os sujeitos de outras formas. A loucura, o louco, a doença, a pobreza são igualmente potencializadas pelas práticas preconceituosas e racializadas. Sim, o racismo ali também opera em seus mecanismos de opressão e negação de direitos.

Eis que me perguntava: como a arte-educação seria transformadora desse espaço?

Entendo que a pesquisa em arte, nas suas diversas linguagens, exorta o combate ao racismo a costurar a existência dessas mulheres, traçando também em mim a busca pela ressignificação das coisas. De encontrar os sentidos e sensações que permeiam nossas vivências na tentativa de contribuir para um processo em construção.

É imprescindível considerar que as experiências de mulheres negras diante do racismo não estão balizadas em uma conduta vitimizada. Ao contrário, deve-se refletir sobre suas lutas políticas e sociais, compreendendo que suas subjetividades as tornam também diferentes umas das outras. Com isso, elas historicamente souberam criar astúcias individuais e coletivas no cotidiano diante de tantos obstáculos a transpor.

Criar, experimentar, reinventar são verbos presentes na trajetória de mulheres negras, inclusive a minha. Portanto, através do resgate da memória, a ancestralidade antes negada desenha uma nova existência que resiste na possibilidade de transformar. E redesenhar a vida com ajuda da arte.

 

Viviane Rodrigues, 42, mulher negra, de Pelotas, interior do Rio
Grande do Sul. Escritora, pesquisadora e Arte-educadora no CAPS
(Centro de Atenção Psicossocial). Doutoranda em Educação pela
UFPel, onde desenvolve pesquisa sobre racismo e adoecimento
mental de mulheres negras.

 

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