Memórias de um estudante brasileiro de periferia

Memórias de um estudante brasileiro de periferia

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2021 é “memória”


A memória perambula sobre a alma e não dá sossego. Ela se parece com Sísifo, o mito da repetição, e mergulha de forma desconcertante no íntimo da existência humana, criando instabilidades sobre o viver. Há coisas na memória que melhor seria esquecer, mas estes pesadelos existenciais e sociais persistem em provocar divagações em mim. O que está na memória não pode se apagar. Tudo fica guardado nós sob penumbra e quando aparece algum fato inusitado, transbordam coisas que talvez não quiséssemos lembrar, tal qual as surpresas da caixa de Pandora.

E eu não sou Brás Cubas, de Machado de Assis, que esperou morrer para contar todas as experiências pelas quais passou. E a história dele é bem diferente da minha: ele tinha vergonha, em vida, das coisas que fez; eu tinha vergonha das coisas pelas quais passei, pois achava que os infortúnios que tive de viver eram coisas só minhas, uma vivência particular. E sob estas inquietações, sobrevoam em mim memórias em vida. Vida de menino, transmutada em vida de adulto. Mas é preciso criar coragem e revisitar a história de vida. É o que farei nas próximas linhas.

Veio à memória a cena de um garoto no lado de fora do portão de entrada da escola. A gurizada entrava em fila, em rebuliço e euforia, enquanto ele, com o fardamento escolar incompleto, esperava a autorização da diretora. Era preciso calça azul, meias pretas ou brancas e camisa branca com o símbolo da escola para acessar a sala de aula. “Ah, ficar do lado de fora como um marginal! Que humilhação!”, matutava o menino, que desejava estudar e se divertir. Só depois que todos entravam, o garoto era chamado na secretaria para explicar o porquê de não estar com a farda completa. Outro momento de angústia e desolação.

Minutos depois, em sala de aula, a professora pedia que todos pegassem o livro didático para realizar as atividades escolares. Mais uma vez o garoto não havia comprado o tal livro.

De tanto ser barrado no portão de entrada e ir para sala de aula sem o livro didático, o menino tinha vontade de fugir da escola, mas ele continuou a jornada como forma de combater o analfabetismo e a precariedade da educação vivenciada.

Estas eram situações corriqueiras dos meninos e das meninas da periferia que queriam estudar nos anos 1970: não tinham farda, não tinham livro. Tudo isto era uma forma de distanciamento da escola, o que poderia levar a um peculiar jargão daquela época, o da “evasão escolar”. Mas os garotos e garotas daquele período histórico tiveram de transformar aqueles ritos de segregação social em momentos de resistência e continuaram a estudar.

Na idade adulta o processo de desigualdade educacional se acirrou, o menino, que não tinha farda nem livro didático, começou a trabalhar. Logo se aproximou dos livros e dos discos e começou a frequentar cinema e teatro. Em pouco tempo partiu para fazer um curso superior, mas a universidade pública estava fechada para os estudantes periféricos. Só havia aula durante o dia, um empecilho para quem trabalhava. Mais uma jornada de exclusão educacional: estudar à noite, trabalhar de dia; estudar à noite, trabalhar de dia, uma vivência do mito de Sísifo, uma jornada interminável do desejo de se educar.

Foram as memórias estudantis que alertaram o menino, que se tornou adulto, sobre os novos meios de distanciamento entre  a escola e a juventude brasileira durante a pandemia do coronavírus. Se antes faltava farda escolar, hoje falta acesso à internet; se antes faltava livro didático, hoje falta computador em casa.

Hoje o menino-adulto olha para a memória individual e percebe aqueles acontecimentos como dispositivos de  perpetuação de desigualdades sociais contra as pessoas que desejavam estudar: uma memória histórica. É necessário reconhecer essa imbricação entre o individual e o histórico para que a gente aprenda a perder a vergonha e passe a contar a própria história, uma vez que os problemas de vulnerabilidade social pelos quais os cidadãos vivenciam no intrapsíquico são fruto de processos sociais de pobreza criados em sociedades desiguais, como é o caso da sociedade brasileira.

Como um álbum de fotos escondido em um baú, o menino-adulto guardava aqueles fatos como memória individual e os escondia de tudo e de todos, mas era preciso reagir. A partir do momento em que o menino-adulto passa a refletir sobre os problemas, não os considerando mais como questões individuais, reconstrói as  memórias históricas e se mostra para a sociedade.

E assim o menino-adulto vai desafiando Brás Cubas e se revelando em vida para construir novos mundos e novas experiências.

 

Cleonilton Souza, 57, doutorando
em educação pela Universidade
Federal da Bahia, adora caminhar
descalço nas areias da praia,
divagando sobre questões pessoais
e coletivas da existência humana.

 

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