Expectativa x realidade

Expectativa x realidade
(Arte Revista CULT)

 

Por Maria Clara Vergueiro

Diante de mim, minha filha. Um pouco pequena ainda, mas já ocupa um espaço próprio, movendo-se no ambiente com autonomia, compondo gestos e expressões autorais enquanto fala – mesmo que se perceba, aqui e ali, a interferência de outras vozes, que de todo modo são dela, do seu universo pessoal. Quando me dei conta, não tinha mais controle sobre as unhas, nem sobre os cabelos. Perdi o acesso ao seu corpo, um corpo que agora se esconde do meu olhar, se cobre ou se expõe demais. De repente fiquei ridícula. Minha maturidade, que deu um salto com o seu nascimento – “sou mãe”, eu dizia, e aquilo me tornava gigante – evapora-se na velocidade das palavras que saem descontroladas da minha boca. Eu validava minha experiência no mundo a partir daquele bebê. Minha existência havia servido porque passei a ter uma ocupação permanente e indiscutível. Vi tudo ganhar sentido, acreditei que havia nascido para a tarefa de cuidar daquela criatura, tão minha quanto do mundo, o mundo me pertencendo de certa maneira, ela sendo apresentada a ele pelas minhas mãos. Vejo quanto narcisismo havia naquela descoberta, sim. Mas lá, quando éramos duas pontas de um mesmo cordão, também havia uma entrega de cada uma de nós, um amor que se sobrepunha a este prazer egoísta de se afirmar através do filho. E hoje, neste exato dia em que escrevo, ser mãe foi um detalhe impreciso da minha conversa com ela. Não sei dizer como é que minha lucidez e meu bom senso saltam de um precipício dentro de mim, despencando em queda livre até que eu exploda, até que me escapem as rédeas da conversa e eu me misture às emoções desta menina e me perca completamente, numa incontinência verbal súbita, que expõe todas as minhas fraquezas, meus maus hábitos, meus medos, numa sequência patética de frases grosseiras.

O que antes refletia minhas virtudes, hoje espelha debilidades. Não posso atribuir a ela a imagem deformada que vejo de mim mesma. Ela é uma menina, crescendo, doendo. Pode vibrar descompassadamente, ser contraditória, errática, desorganizada. Não eu. Em tese. Mas aí, como numa dança atrapalhada, conduzo e sou conduzida aos solavancos, sem ensaio, num improviso que me parece perigoso, onde me arrisco o tempo todo para salvar alguma sequência de acertos. Depois vem o remorso e o medo. Qual o real tamanho do estrago que causei? Vão me dizer que não me aflija, que é assim mesmo, mãe erra e deve poder errar. Acredito. Minha solidariedade a todas as mães que simplesmente não sabem o que fazer. Mas a minha filha poderia ter sido poupada. Eu poderia ter sido poupada, se fosse equilibrada como minha mãe, se fosse evoluída como as mães que admiro por aí. A mim coube ser esta confusão, alternando um senso de responsabilidade visceral com espasmos de egoísmo, distribuídos ao longo de uma narrativa sobre a qual certamente predominam o amor e a escolha. Ainda assim, justo a mim coube ser esta mãe que eu não pretendia ser.

* * * *

As expectativas eram altas: abriria em mim um pedaço exclusivamente dela, sendo também capaz de preservar meus próprios ambientes, para acomodar as outras relações, os sonhos, projetos, reflexões. Estaria disponível para ela na maior parte do tempo, munida das respostas para suas perguntas, o alimento, a música, o afeto. Não descuidaria dos limites – ah sim, criança precisa de limites bem definidos – e seria firme quando fosse preciso. Ela reconheceria na minha voz uma autoridade acima de todas, sentindo-se segura de que ali estava uma figura inabalável e conhecedora das coisas do mundo que ela tateava e degustava ainda com a ponta da língua e dos dedos. Estaria sempre cercada de cuidados, com margem para arriscar, errar, ser livre e autêntica. Cresceríamos juntas, mãe e filha, aprendendo com nossas investidas, fortalecendo este laço espontâneo, que já nasce feito e só ganha musculatura ao longo dos anos. E quando enfim chegasse o momento de deixar a infância, ela teria o instrumental necessário para viver suas transformações sem maiores sustos, contando comigo sem dificuldade. Ser mãe, no entanto, tem sido mais improviso que garantia.

Maria Clara Vergueiro, 38, é jornalista em São Paulo – SP

 

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