Uma preguiça útil

Uma preguiça útil
(Arte Andreia Freire)

 

A preguiça é um daqueles históricos pecados capitais que, junto à gula, à inveja, à soberba, à mentira, à avareza, à heresia e à ira, sinalizam para uma desmedida indesejável.

Indesejável para quem? É a pergunta que devemos nos fazer. É verdade que a instituição do pecado foi criada pelo poder eclesial e, no acordo entre os que administram a fé com os que detêm o capital, afetos, posturas, estados físicos e emocionais, afetivos ou lógicos, foram tratados conforme interesses bem específicos. A ideia de pecado foi criada para definir um antivalor que é relacionado a um demérito projetado no outro.

Em palavras bem simples, é certo que a colocação da preguiça no rol dos pecados tem até agora uma função específica. Inventada como o negativo do trabalho, sob a condição de pecado, a preguiça foi tratada como o mal capaz de destruí-lo. Como pecado, ela serviu para facilitar a divisão injusta do trabalho. A demonização da preguiça servia para controlar as pessoas destinadas ao trabalho, mas nunca foi considerada um mal para aqueles que não precisariam trabalhar à medida que eram donos das terras e de outros meios de produção. A preguiça não seria jamais o nada fazer dos ricos, mas o nome dado ao indesejável não fazer dos pobres, dos trabalhadores e, sempre, evidentemente, dos que foram escravizados.

Inventada como um antivalor pelo cristianismo, a preguiça é usada pelo capitalismo com fins ideológicos. No contexto do que vem sendo chamado de “meritocracia”, a ideologia que mistura a ilusão individualista e a servidão ao trabalho, a preguiça se torna o pior dos males. Contudo, sob a mira do sistema capitalista ocorre uma astuciosa inversão de valores e a preguiça que era considerada algo ruim, despercebida, muda de figura.

A mais fundamental das estratégias do poder é a manipulação das ideias. Nessa linha é que a preguiça dos outros – daqueles que não constroem discursos, e muitas vezes até os repetem por adesão irracional e espontânea à ideologia – foi transformada em algo nocivo enquanto a preguiça dos donos dos meios de produção nunca recebeu esse nome.  

Se podemos falar de preguiça em relação ao trabalho – alguém já falou da preguiça até mesmo em relação ao sexo –, às coisas que nos soam cansativas em geral, sejam ideias e ações, teorias ou práticas que demandariam esforços sem promessa de compensação, devemos analisar as transformações da preguiça em função de certas necessidades ideológicas.

Como o poder não dá trégua e o discurso acobertador continua seu projeto de convencimento dos otários, a preguiça assume novas formas, mas nem sempre revela seu nome. Uma nova forma de preguiça surge entre nós. Uma preguiça útil. Se a preguiça dos outros relativa ao trabalho era ruim, a nova preguiça tornou-se uma coisa boa enquanto é útil ao sistema econômico e político.

É a preguiça política que encontramos no dia a dia. Em frases como: “política me dá preguiça”, essa preguiça útil resulta do descaso e produz descaso  com o mundo político e com a condição política de nossa vida. Aos seus difusores podemos perguntar como chegaram ao seu elogio. Provavelmente apenas nos olharão cansados, manifestarão seu desentendimento olhando-nos com desdém.

Em tudo parecida com a negligência, essa forma de preguiça nos obriga a esquecer o que nos faz sofrer. Um dia é preciso esquecer as dores do trabalho, no outro as dores da política.

Se, por um lado, a preguiça é um desejo de não fazer pecaminoso, por outro ela foi transformada em um não agir desejável. Nessa linha, não deixa de ser curioso que aqueles que alimentam a ideologia meritocrática ao mesmo tempo fomentem a preguiça política.

Do mesmo modo, é incrível que não haja referência à preguiça relativa ao árduo e cansativo trabalho do consumo, incluso o do trabalho no contexto da moderna escravização digital.

(1) Comentário

  1. Ok…. mas Márcia Tiburi parece ter esquecido que capitalismo só remunera o ócio daqueles que especulam com vastos cabedais financeiros. Todos os demais foram condenados à uma atividade frenética de produzir suas próprias vidas. Quando param os condenados ao trabalho se sentem oprimidos pelo ócio. É assim que a maldição da produção incessante se torna completa justamente através da inatividade improdutiva que é amaldiçoada por aqueles que não foram treinados pelo capital para desfrutar o ócio.

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