Mal estar e Autocrítica – sobre a narrativa de Carlos de Brito e Mello

Mal estar e Autocrítica – sobre a narrativa de Carlos de Brito e Mello

A cidade, o inquisidor e os ordinários de Carlos de Brito e Mello (Companhia das Letras, 2013)

Quem se dispuser à leitura de A cidade, o inquisidor e os ordinários de Carlos de Brito e Mello encontrará uma alegoria nada elementar, ou melhor, um cruzamento de alegorias em que personagens e ações dizem o que dizem e podem sempre dizer outra coisa. A “mensagem” é bem direta, mas pode ser que não seja, quero dizer. Embora seja.

O livro pede um leitor insistente. Um leitor que aceite desafios. Um leitor cuja atenção vá além da disposição ao entretenimento, potencialidade que, para tanta gente, ainda é a virtude de qualquer livro. Quando alguém diz “o livro me pegou, não pude parar de ler”, então, pensamos – sem muito refletir – que o livro seja “bom”. A Cidade, o inquisidor e os ordinários é bom em muitos sentidos, mas de um jeito contrário aos sentidos habituais (os construídos pelo mercado e pelas leis que regem o gosto e a forma da tendência dominante). Digamos que, no caso desse livro, você queira parar de ler, só que o livro faz você saber, sem nenhum apelo, que se você quiser permanecer um leitor sério, não pode parar de lê-lo. Você não deve parar de lê-lo.

Embora seja um livro de 470 páginas, e os livros bem longos possam causar a impressão de passatempo garantido, não se trata de um livro para alguém distrair-se. Como sempre digo: gosto de livros que me fazem pensar. Esse foi além. A cidade, o inquisidor e os ordinários faz pensar do começo ao fim, mas faz pensar em algo mais. No começo, contudo, perguntas simples podem atravessar a leitura. Elas surgem no desejo de amenizar o estranhamento: o que está acontecendo? Há alguma significado para o que está sendo dito? Que personagens mais estranhos, não? O que o autor pretendia quando escreveu essa história dessa maneira, quando construiu esses personagens tão incômodos?

Eu me fiz as perguntas simples acima mencionadas, mesmo achando que não era bem isso o que estava em jogo. Todo livro, a gente sabe, implica um mistério, mesmo quando não há mistério nenhum. Talvez seja a própria experiência da leitura que nos convida a encaixar a ficção na realidade e vice versa. Todo livro nos pergunta o que ele tem a ver conosco, o que temos a ver com ele. E quando não temos nada a ver, fugimos amedrontados. Pena, às vezes perdemos a chance de encontrar um espelho por puro medo da imagem que nele possa surgir. Quem acostumou-se aos gêneros do teatro e já ouviu falar em “farsa” – que é um tipo de comédia em que a trivialidade e a extravagância entram em cena sem muitas pretensões senão fazer rir – talvez não ache a forma dessa narrativa assim tão estranha. Mas neste livro não se poderá rir de muita coisa, muito mais, se sentirá uma sensação de estupor, de absurdo, de nonsense.  E, avançando, chegar-se-á ao que de melhor o livro nos dá: um tremendo mal estar.

Como diz o título, em A cidade, o inquisidor e os ordinários encontraremos uma cidade sob um clima de inquisição, sob o controle de um inquisidor nomeado como “O Decoroso”. O inquisidor é um sujeito obsessivo que quer a cidade como ele acha que ela deva ser. Seu trabalho e seu prazer é capturar “Bobos” e defender a “lei do decoro” a todo custo. Como em contos e romances de Kafka, ele tem seus ajudantes – o Olheirento e o Apregoador – que ajudam a vigiar o cenário, a cidade, onde os outros personagens desenvolvem suas vidas. Vidas, a propósito, muito bestas. Existem personagens instigantes justamente porque são simples e comuns. A “Amada”, por exemplo, é uma dona de casa que tem uma família feliz, mas não é bem assim, embora seja… As Vizinhas se ocupam com a repetitiva narrativa da vida alheia de um ponto de vista imbecil a que chamamos “fofoca”. O Bem Composto, é um sujeito esforçado, um alfaiate sério, é afinal, um “bem composto”. É fácil identificar-se com eles, e com tantos outros, pois que são gente como a gente, como se diz. Com os chamados “bobos”, no entanto, é mais fácil ainda. Mas a identificação com os bobos causará ao leitor real pavor do seu próprio ato mental de identificar-se com as figuras abjetas que eles são. A pessoa qualquer, que cultive um certo senso crítico, facilmente sentir-se-á perto dos bobos. Os bobos são incrivelmente fracassados, sem noção, dependentes, ingênuos, flácidos, gordos, pesados, inúteis. São bobos também porque entram na onda do inquisidor de um jeito muito simples. No entanto, quem, lendo esta “farsa” chegue a sentir-se próximo do Decoroso, deverá sentir-se pior ainda… Mas quem conseguiria?

O livro dá ao leitor, muito pensamento, mas também um maravilhoso mal estar. Maravilhoso, é isso mesmo que eu disse. O mal estar em dose alta é sua maior virtude. Numa época em que todo mundo se acha o “maioral”, o “esperto”, o “sabido”, o “bom”, esse livro é de lavar a alma. Numa época em que fascistóides ganham cada vez mais espaço na mídia, no governo, no dia a dia, em que os bobos morrerão pendurados em antenas como nesta bela narrativa, um livro como esse faz cócegas – perversas para os bobos, necessárias para quem ainda possa se manter lúcido – no ego nacional.

Pena que os decorosos de plantão, sacerdotes do ódio ao outro, não o lerão. E se lerem, não vão vestir a carapuça. Por que para vesti-la é preciso ser um leitor inteligente. E a inteligência é uma construção social à qual podemos chamar em caixa alta de “AUTOCRÍTICA”.

Esse mal estar da autocrítica é o que o livro nos dá. Bem pode ser a nossa bandeira.

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