MÃE DESNATURADA

MÃE DESNATURADA

Da minha coluna da Revista Cult 

A auto-enunciação do desejo das mulheres e a desconstrução do mito da maternidade

A maternidade é um mito que necessita de urgente desmontagem crítica. Eis a tarefa que a filosofia feminista deve colocar para si mesma hoje em contextos culturais que não promovem a liberdade de escolha das mulheres, pela qual, a propósito, apenas elas podem lutar.

Em tais contextos administrados pela ideologia masculinista, mulheres que abortam ou afirmam não querer ter filhos são vistas como anormais. Do mesmo modo, mães que não ajam segundo certo padrão de maternidade em que a dedicação total à criança é a lei, seja por cansaço ou falta de afinidade com o mundo dos cuidados, são vistas facilmente como perturbadas.

Pelo simples fato de desejarem carreira, diversão ou uma simples vida mais livre, muitas mulheres se sentem culpadas, ou desistem de um projeto profissional ou pessoal. Praticam a maternidade como a condenação heteroimposta.

Certo é que colocar pessoas em um mundo como o nosso não é uma tarefa para quem não esteja muito bem preparado, mas raramente se pergunta a uma mulher se ela está, pois que não se espera dela que não esteja. Há um dever imposto às mulheres, mas ele é mascarado pelo argumento do “desejo que toda mulher tem de ser mãe”. O termo “mulher” acaba por designar o ser do qual se pressupõe um desejo que será sempre o de ser mãe. O dever reza que seja hábil para a maternidade pelo simples fato de poder parir fisicamente crianças.

Na cultura masculinista, “mulher” não é um conceito, mas uma ideia formada de preconceitos. Isso quer dizer que se pressupõe um saber sobre o desejo (o que sente, pensa e quer) o ser heterodeterminado “mulher” antes que ele mesmo se pronuncie sobre algo como “seu próprio desejo”. Nesse sentido, a pergunta “o que quer uma mulher?” não ajuda a sair do mistificatório circuito masculinista que, ao tornar misterioso o desejo feminino, faz parecer que exista um desejo universal da “mulher” (ela mesma um universal), e não desejos individuais e singulares de cada pessoa humana.

No processo de mistificação, o sistema masculinista usa um padrão discursivo sempre fundado na ultrapassada ideia de natureza que aos poucos se torna clichê cansativo. Contra a pré-suposta “natureza da mulher” ou a suposta maior proximidade da “mulher” com a “natureza” coloca-se o homem como um ser de cultura e de racionalidade. A mulher fica com a “sensibilidade”, o instinto, a irracionalidade etc.

Não quero ser mãe

Uma mulher enunciar “não quero ser mãe” soa como algo absurdo à moralidade patriarcal desde que a maternidade é vista como função natural, não determinada culturalmente. Segundo o preconceito da “natureza”, uma mulher deve querer ter filhos e não deve pensar nem dizer que não quer. Por trás dessa ideia, vai o subtexto: “mulher” não deve ter opinião, muito menos desconstruir opiniões vigentes. Pois uma mulher que fale negando a natureza, sobretudo da sacrossanta “maternidade”, nega duplamente o estigma dado pelo masculinismo: além de expressar-se, o faz dizendo que não quer ser mãe quando se esperaria dela o contrário, que não se expressasse e se tornasse mãe.

A simples negação na segunda potência põe o discurso masculinista em xeque. A frase tem o poder de negar a marcação como mãe (lembremos que a mulher é sempre marcada: como bela, boa, gostosa; ou feia, frígida, mal-amada etc.) por meio da qual uma mulher se tornou escrava da cultura da qual ela não pode participar senão na condição que esta mesma cultura a priori determina para ela, manipulando sua consciência, seu corpo, sua ação.

Só que o masculinismo é uma retórica prepotente que manipula agilmente suas armas: a “mulher” que se pronuncie contra ele (e basta pronunciar-se) será marcada com heterodeterminações desabonatórias. A “mãe desnaturada” é como o escravo que ousa desobedecer ao patrão e não é interpretado senão como um fujão mal-agradecido.

A maternidade como imposição cultural é uma manipulação dos corpos femininos e, como tal, não é ética. É isso que está em jogo quando mulheres são tratadas como “meios” do projeto de vida de outros e não como um fim em si. Somente o autoenunciado do desejo feminino é capaz de libertar as mulheres. Ele é o ato feminista por excelência, a ação discursiva e performativa que faz do feminismo uma ética em que está em jogo a soberania do desejo feminino.

A soberania que apavora os moralistas quando se fala em aborto é a mesma que enerva o cafetão. A mãe desnaturada é o nome que o moralismo encontra para sustentar autoritariamente a suposta verdade sobre o desejo das mulheres. Na contramão, a pergunta “o que quer o homem com o desejo das mulheres?” talvez nos ajude a entender melhor os subterrâneos de nossa cultura.

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