Madres paralelas

Madres paralelas

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2021 é “maternidade”


 

Para a psicanálise, quando se trata de criar alguém, exercemos não papéis ligados exclusivamente ao sexo como o constrói a sociedade, mas funções primordiais estruturantes: a função materna é própria daquele que acolhe, que nutre, que cuida, que acalenta; enquanto que a função paterna pertence ao responsável pelo corte simbólico, pela separação e pela imposição da lei. No geral, apesar da mãe e do pai clássicos assumirem as funções materna e paterna, respectivamente, essas podem ser encarnadas e eventualmente alternadas por quaisquer dos progenitores, familiares, amigos e pessoas. Afinal o mundo é uma fábrica de criação muito complexa, e como diz aquele antigo provérbio africano, “é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança”.

Dessa forma, gosto de pensar na maternagem como uma gama de possibilidades muito diversas a serem exercidas fora do padrão tradicional, pois onde há cuidado com a vida, há maternagem: na paternidade, na fraternidade, na amizade, na apadrinhagem e na própria filiação.

E maternagem difere-se de maternidade justamente pela característica do elo. Não é algo puramente biológico. Há pessoas que gestam e não são mães e há mães que nunca gestaram ou nem mesmo adotaram, mas se fizeram mães. Se a maternidade fosse algo universalmente compulsório como era até pouco tempo atrás, certamente criaríamos monstruosidades. Não se pode ser absolutista com algo tão sério, um laço tão basal. A isso chamamos violência e estamos nos rebelando contra ela: sou mulher, mas não quero e nem posso gestar. Sou mulher, mas não sou obrigada a ser mãe.

Rejeitar a maternidade não é cruel. O que ousamos questionar neste ponto da história é que isso não é uma característica intrínseca às mulheres, e muito menos deve ser forçada pelo fato de boa parte delas ter um aparelho reprodutor gestante. Nossa obsessão com a herança da consanguinidade, com a legitimidade do sangue, muito nos priva de enxergar possibilidades – às vezes mais acessíveis – de criação, cuidado e afeto.

Eu vejo maternagem na ajuda humanitária, na luta pela justiça social, no cuidado animal e ambiental. Vejo maternagem em quem tem responsabilidade de produzir um bom conteúdo para os jovens. Vejo maternagem em quem tem sensibilidade para genuinamente ouvir e acolher o outro.

Não, eu não penso na maternidade em minha vida. Mas o desejo de maternagem está vivo dentro de mim, e espraia-se até onde pode.

 

 Paola Romanova, 19, estuda de tudo um pouco

 

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