Lula na prisão: à espera do espetáculo televisionado

Lula na prisão: à espera do espetáculo televisionado
Hoje, a mídia não apenas influencia, mas “decide” pelos outros poderes (Arte Andreia Freire)

Sabemos que o maior de todos os poderes em nossa época é o do que chamamos de MÍDIA. Legislativo, executivo e judiciário são poderes menores perto do poder dos meios de comunicação. O conteúdo produzido pela televisão, por exemplo, funciona como uma prótese de pensamento para o cidadão alienado, mas também para magistrados, procuradores e outros atores políticos, que se demitem do dever de refletir para julgar.

No Brasil, chamamos de “mídia” o que os portugueses chamam de média, palavra que vem do latim, media (meios), plural de medium (meio). Pronunciamos “mídia” como efeito da influência americana no senso comum brasileiro. E, como todos sabemos, basta olhar, por exemplo, para a destruição das empresas brasileiras a partir da Lava-Jato para se perceber que a influência dos EUA em nossa nação não se limita ao vernáculo.

Sabemos que a influência da mídia é imensa em nosso país, mas a própria questão dessa influência já ultrapassou todos os limites dos jogos de poder que conhecemos até aqui. Hoje, podemos dizer que a mídia não apenas influencia, mas “decide” pelos outros poderes. A própria espetacularização das versões produzidas pela mídia são repetidas em atos espetacularizados pelos agentes dos poderes menores que também querem aparecer e ser elogiados na televisão e nos jornais.

Vimos o que aconteceu nesta semana. Um general usou a rede social do Twitter para mandar recados à população. Certamente ele não estava apenas trocando ideias com amigos em público. O tom do que ele disse era ambíguo, podia ser interpretado de vários modos. Aliás, no Brasil, atualmente, há uma espécie de “interpretacionismo” a céu aberto que de um lado parece apenas fruto da incompetência de quem fala, mas de outro revela que a ambiguidade no discurso é um jogo de poder que se beneficia com o efeito do caos produzido pelo emissor. Naquela mesma noite, no Jornal Nacional, o apresentador, um dos personagens mais mecânicos da cena brasileira, falava como um robô a partir do tuíte do general. Quem tem algum sentimento cívico ou visão democrática sentiu uma profunda vergonha alheia.

Há uma continuidade visível entre essa pequena cena midiática de terça-feira, 3 de abril, e a cena de ontem, dia 4 de abril, no STF, em que os ministros que votavam contra a constituição faziam um discurso populista e, muitas vezes, incompreensível. Ninguém conseguia entender o que dizia um Fachin, que chegou a citar doutrinadores que imediatamente vieram a público declarar que o ministro não havia entendido o que eles escreveram, ou uma Rosa Weber, que dizia ceder a uma maioria, que só era maioria por causa do voto dela. Discursavam mal escondendo, atrás de palavras confusas e argumentos sem pé nem cabeça, a finalidade político-midiática dos seus votos.

Um detalhe: o melhor jeito de acabar com o poder dos poderosos é não lhes dar poder. Assim, se não acabamos com o poder da televisão no dia em que nos negarmos a ser sua audiência, pelo menos somos capazes de relativizá-lo e colocá-lo assim no seu devido lugar, um lugar que deveria ser menor do que dos demais poderes. É claro que o Estado já deveria ter se ocupado de regulamentar os meios de comunicação – como fizeram a França, a Inglaterra e até os Estados Unidos -, mas os detentores do poder econômico que tomaram o Estado brasileiro sempre se beneficiaram destes meios. Uma atitude institucional precisa ser tomada (e nunca será com o governo do golpe que depende da televisão), mas a atitude pessoal também é pragmaticamente necessária. Essa atitude implica a dignidade que falta a muitos agentes em todos os cenários. Não uso o termo “dignidade” em sentido moralista: uso-o em sentido ético-pragmático.

Lembremos de Eichmann em Jerusalém e que não se negue que o pessoal é político, que o lugar que cada um ocupa como cidadão ou funcionário produz efeitos. A construção de uma outra sociedade, querendo ou não, passa pelo lugar de cada pessoa, de cada singularidade que ocupa seu lugar político no mundo, sobretudo como cidadão. Dignidade tem a ver com coragem. Falar de dignidade em uma hora como essa pode parecer ingenuidade. Quem vai esperar respeito à dignidade por parte de agentes que estão presos ao poder midiático? Mas há resistência, como ontem demonstraram alguns poucos ministros.

Sabemos desde o Golpe de 2016, que depôs Dilma Rousseff, para o qual ingenuamente não estávamos preparados, que há um jogo armado, programado. Toda a “programação” do Golpe foi bem montada. Programaticamente montada como um espetáculo. Como em uma série de televisão, o roteiro está dado. Cada ator tem o seu papel. Direitos e garantias fundamentais devem ser afastados para não impedir o final desejado pelos diretores e patrocinadores do show. Há muitos capítulos que já vimos e todos esperam pelo capítulo final em que Lula será preso.

Um final adequado para uma audiência sádica, que sente prazer com o sofrimento e com a humilhação. Uma perversão que uma manifestante antes do julgamento deixou explícita ao declarar que seria “sexy” pedir a prisão do ex-presidente Lula da Silva.

Lula preso será um espetáculo de prazer visual para aqueles que o odeiam, e será um momento de desprazer para aqueles que o respeitam. Sem esse espetáculo, o papel exercido pelo juiz Sérgio Moro perderia o sentido e ele seria relegado à insignificância a que estava antes de ser escalado como um dos protagonistas da trama.

Com o espetáculo, esses atores canastrões conseguem uma sobrevida pelo menos com aquela parte da população alimentada com a ração envenenada do ódio produzido há tempos pela mídia.

(20) Comentários

  1. Regulamentar a mídia é algo essencial, mas é uma pauta bastante, digamos, polarizada entre a militância e os intelectuais da esquerda. Existem juristas, professores e representantes da classe trabalhadoras que se comportam de forma diferenciada nas redes sociais quando suas análises, declarações ou artigos são vinculados pela ‘grande imprensa’. Esse mesmo ‘orgulho’, digamos, não se dá quando seus trabalhos são vinculados em veículos alternativos, por exemplo. É bastante simples constatar isso, pois mesmo sendo de esquerda, um professor de direito sempre se ‘gaba’ mais ao parecer num Jornal Hoje ou no JN do que numa Mídia Ninja. Mas além dessa parte da conscientização do devido uso e da imprensa livre e de seu fortalecimento partindo do meio da própria esquerda, existe a questão parlamentar que toca os interesses da indústria, financeiros e dos próprios políticos. Milhares são donos de concessões filiadas à Globo, SBT e etc.. o que torna uma regulamentação via processo legal mais difícil. O próprio governo precisa de todo o tipo de empresa para pulverizar suas investidas sociais, principalmente as grandes. O PT pode não ter conseguido viabilizar um projeto na casa nesse sentido, mas, por outro lado, não fez muito pela EBC, por exemplo. Existem concessões evangélicas comandadas por pastores e igrejas que hoje são partidos, estão à frente de municípios e compõem uma bancada no congresso que tem e mostrado para vez mais forte. Fica difícil. O povo precisa virar as costas, mas, até aqueles que fogem da Globo por não querer entrar no debate político acabam recorrendo a outro tipo de entretenimento do próprio acervo dela para se informar ou se descontrair, seja no GNT, pela Sky, NET, Viva e por aí vai. Fica difícil. Principalmente quando olhamos o que a imprensa está fazendo no sentido de chamar pra si o dever de dizer o que é ou não fake news, em ano eleitoral, o que irá gerar uma espécie de alto valorização desse trabalho sujo que elas fazem.

  2. Sim Marcia boa reflexão. Infelizmte pelo que observo, parece-me q a massa dos que constroem o brasil,trabalham duro e ao voltar pra casa… dá-lhe Globo… para arejar e… …FORMATAR a cabeça.

  3. Como sempre, as inteligentes reflexões da filósofa Márcia Tiburi valem a pena serem lidas, especialmente neste momento sombrio de indigência intelectual e política.

  4. Márcia Tiburi,
    Maior expressão do pesamento contemporâneo brasileiro. Tudo que escreve merece apreciação e reflexão aqui e em qualquer canto do mundo.

  5. Lamentável a conjuntura que estamos vivenciando na historia do nosso país. Espero que saia um fruto do cinza. Abraços!

  6. Sua lucidez me inspira e dá esperanças, principalmente num momento tão escuro e triste como o nosso. Sei que o legado de Lula vai virar o fantasma histórico que para sempre perseguirá seus idiotas carrascos de hoje, que infelizmente são uma maioria que não pensa e absorve tudo com um nível de criticidade pior do que nulo, porque pautado em viés maldoso, desumano, mesquinho, ardiloso. Está muito difícil encontrar ares respiráveis por nossos espaços de vida nesta terra que tanto queremos bem e que vemos ser destruída, vendida, aniquilada. Precisamos mais de vozes como a sua que grita o fim de um patriarcado capitalista que nos mata a alma, retira o ar vital, destrói a utopia.

  7. Existe muita coisa confusa nisso tudo, mas fato é que se Lula não roubou, não estaria passando por isso, tem que ir pra prisao ele e todos que srmpre agiram e agirao assim

  8. Diante dos espetáculos diários midiáticos, da falta de amor e respeito ao outro, precisamos de paciência e vontade pra resistir e falar e mostrar outros discursos e possibilidades, outro jeito de fazer a vida,

  9. Marcia Tiburi,
    Uma das grandes pensadoras de nosso tempo e que luta incansavelmente contra uma situação em que somente os políticos de esquerda devem ser punidos.

  10. Bom dia Revistacult,
    Depois deste espetáculo da prisão do Lula não duvido de mais nada, mas uma coisa fiz, não ouço mais rádio não vejo televisão, como mudou. Olha a mente fica mais pura.
    Agora mais purificada consigo ver que a quantidade de idiotas que o Brasil tem é enorme. Como somos fúteis. Tenho dó de mim tem que conviver com isso.

  11. “…no Brasil, atualmente, há uma espécie de “interpretacionismo” a céu aberto…”
    A ministra Rosa Weber manteve, de fato contrário a constituição, uma decisão anterior do colegiado portanto que já existia dizer que seu voto mudaria o passado alimentar o desentendimento.
    O Lula só “furou a fila” e furar a fila e crime menor no BRASIL… entendam como quiser!!!

  12. Ótima análise da atual espetacularização que manda no poder. Qdo na verdade o poder é do povo. E não merecemos o que é noticiado e aplaudido por grande parte da população que é corrompida pela mídia. Parabéns, Márcia Tiburi. Excelente texto.

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