Lula está preso, José. E agora?

Lula está preso, José. E agora?
(Arte Revista CULT)

 

Em outubro do ano passado, em um ato pró-Haddad já no segundo turno das eleições presidenciais, o senador Cid Gomes fazia críticas e cobrava um mea culpa do Partido dos Trabalhadores nesses termos: “Tem de pedir desculpas, tem de ter humildade e reconhecer que fizeram muita besteira”. Era o bastante, naturalmente, para que militantes começassem a gritar o nome de Lula em protesto. Foi então que se ouviu, pela primeira vez, da boca de um Ferreira Gomes, a declaração que posteriormente virou meme e viralizou em ambientes digitais, principalmente nas redes antipetistas: “O Lula tá preso, babaca”.

Este episódio e esta frase tiveram certamente um considerável impacto no já precário arranjo de forças de apoio a Haddad no segundo turno, mas também continua exercendo algum efeito na (não) construção de uma frente de esquerda para enfrentar o governo Bolsonaro, agora no início do ano. Naquele momento, revelou uma fissura fatal nas forças que estavam sendo convocadas para enfrentar, unidas, a ameaça à democracia que se acreditava concretizada em uma eventual vitória da direita conservadora. De tal forma que, ao fim e ao cabo, revelaram-se poucos e insuficientes os que, no centro e na direita do espectro ideológico, engoliram as suas reservas ao PT e ao comportamento de Lula nas eleições e entraram realmente na campanha de Haddad no segundo turno.

Havia naquela sentença crua e rude, “Lula está preso, babaca”, a expressão de que Lula estava realisticamente impedido de liderar politicamente a resistência à extrema-direita. Consequentemente, era preciso abrir espaço para cenários não lulocêntricos de articulação política e de formulação de projetos e programas de ação. E, naturalmente, abrir espaço para líderes que não passassem necessariamente pela unção de Lula, a que Haddad docilmente se sujeitou, nem precisassem jurar fidelidade a Lula. Os petistas, contudo, recusavam até mesmo a Fernando Haddad a possibilidade de se afastar do centro gravitacional lulista. Como, então, iriam permitiria a alguém, que certamente não é “um de nós”, vir demandar publicamente uma admissão de culpa política pela corrupção dos governos petistas, exigir uma confissão de erro de Lula na estratégia eleitoral de 2018 e, suma ignomínia, reivindicar do petismo uma revolução copernicana que exigia substituir o lulocentrismo por outro sistema de mobilização e ação política? Inconcebível. Perde-se a eleição, mas não a convicção. E foi o que se deu.

Na semana passada, durante a bienal da UNE na Universidade Federal da Bahia, tivemos a repetição da famosa declaração, desta vez na boca do próprio Ciro Gomes. O desfecho do episódio me parecia muito previsível. A UNE e a política estudantil universitária são um reconhecido reduto do lulalivrismo, a convicção segundo a qual a redenção da política democrática brasileira passa, necessariamente, pela libertação e restauração de Lula. Ora, o clima entre os Ferreira Gomes e os lulalivristas havia azedado completamente desde o aludido episódio protagonizado por Cid Gomes, seguido pelo dourado exílio parisiense de Ciro e a sua completa ausência na batalha quando as forças do petismo e do antibolsonarismo foram sitiadas e derrotadas no segundo turno. Não seria certamente na cidadela do lulalivrismo, um congresso da UNE, que a reconciliação seria feita. Tratava-se, obviamente, de uma cilada. De que Ciro tinha certamente a mais perfeita consciência. Não há de se esperar que houvesse inocentes no que ali sucedeu.

Como pode ser visto nos vídeos que registraram o acontecimento, Ciro Gomes, como se diz no futebol, “deixou o corpo” para receber a entrada do adversário e ganhar a falta dentro da área. Ainda mais que o discurso foi feito exatamente um dia após Lula ser condenado, desta vez a quase 13 anos de prisão. O script usado seguiu quase fielmente o roteiro de outubro e começou com uma demanda, desta vez em irritante tom condescendente, de admissão de erro. “Imagina um jovem num bar agora obrigado a defender corrupção, ladroeira, aparelhamento do Estado, fisiologia, formação de quadrilha”, iniciou Ciro, o tiozão da massa. Praticamente pediu para ouvir o primeiro insulto, “corrupto!”, gritado pela turba ressentida, o que lhe bastou para encaixar o mote ensaiado: “Eu não sou não, eu estou solto, 38 anos de vida pública e nunca respondi por nenhum malfeito. Eu sou limpo! Engole! O Lula está preso, babaca!”. E ainda, perorou a lacração, saltitante na rinha: “Provocou, vai ouvir”.

É fato que Ciro Gomes se mostra cada vez menos interessado em construir pontes políticas e liderar a oposição e mais interessado em vitórias fáceis em bate-bocas contra os devotos do lulalivrismo, jogando para o público no esforço de construir a imagem de que é uma esquerda diferenciada. Não obstante seus objetivos ocultos, o que importa para o tema em tela é que os Ferreira Gomes talvez errem mais no ponto do que nos ingredientes. Erram o ponto porque, grosseiros e apressados, buscam o pós-lulismo por meio de uma linguagem próxima demais do antilulismo. Como não são dados a sutilezas e os nervos estão à flor da pele, para os petistas e para os bolsonaristas trata-se exatamente da mesma coisa.

Mas não haveria vantagem alguma para Ciro Gomes em vender-se como antilulista, vez que este espaço já está saturado pela direita. Além disso, a última experiência de Ciro como candidato deveria lembrá-lo que Lula e o PT, queira ele ou não, são uma força eleitoral muito maior do que as suas próprias forças. Paradoxalmente, a última eleição mostrou que, para a esquerda e o centro-esquerda, não se ganha eleição presidencial com o PT (vide Haddad) nem se ganha eleição presidencial sem o PT (vide o próprio Ciro). Ponto. Este terrível enigma já deveria ser o bastante para que Ciro entendesse de vez que não irá muito longe pisando nas pontas dos pés dos petistas e se envolvendo em rusgas evitáveis com fanáticos lulistas de DCE. Não, não é o antilulismo, mas o pós-lulismo, estúpido. O pós-lulismo, ou o fim do lulocentrismo, sim, são a alternativa a ser construída.

Por outro lado, Lula está efetivamente preso. O rude vocativo “babaca” pode ser substituído por outros que revelem mais empatia, como “Lula está preso, amigo”, “querido”,”bróder”, ou até mesmo “bebê”. Ao gosto do freguês. Ou até ser suprimido. O fato pode ser ponderado com advérbios que expressem algum lamento como “Lula está lastimavelmente preso”, ou “infelizmente preso”. Tanto faz. Mas Lula está preso e está condenado. Fato. Os petistas e lulistas que aprendam urgentemente a lidar com isso.

Petistas, lulistas e outras pessoas de esquerda podem gastar o resto da vida e das suas energias políticas atacando ferozmente quem prendeu e condenou Lula, quem concorda que ele deveria ter sido preso e condenado e até quem apenas constata que os fatos aconteceram e a vida precisa seguir adiante? Sim, podem. Podem continuar a purgação desse sentimento de injustiça perpetuamente e construir-se praticamente como uma seita de fiéis ultraortodoxos deste credo? Não só podem como o fazem. Mas podem também começar a construir alternativas de sobrevivência política ante o avanço compacto da inédita aliança entre ultraconservadores e ultraliberais, esta que anuncia a quem quiser ouvir em 2019 que pretende demolir tudo o que o centro e a esquerda construíram desde a restauração da democracia brasileira.

É possível o PT continuar cultivando o seu sentimento de ultraje e indignação ética e ao mesmo tempo construir uma alternativa de articulação, refundação e coordenação da sua ainda enorme força social e política? Sim, é possível, mas isso não tem acontecido. De fato, cuida-se apenas de achar cumplicidade na lamúria e de continuar soprando as brasas da indignação. E em gastar toda energia possível atacando quem se recusa a cobrir-se de pano de saco e cinzas, em sincera contrição, pelo que Lula tem passado. E esse luto por Lula que nunca acaba, esta elaboração da dor pela prisão de Lula, em moto contínuo, é praticamente como colocar-se, paralisados, sob o machado do bolsonarismo. O que, no fim do dia, é politicamente improdutivo e claramente autodestrutivo.

Minas não há mais. José, e agora?


> Leia a coluna de Wilson Gomes toda sexta-feira no site da CULT

(2) Comentários

  1. Wilson, nada tão revelador ou extraordinário (texto Lula está preso) mas me impactou demais a simplicidade e a palatabilidade de sua escrita. Uma Arte,!

  2. Faço minhas as palavras do Alessandro aí acima. Qualidade acima da média De quase tudo que tenho lido trata-se de algo de novo e original

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