Lugar de fala

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Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2021 é “respeito”


Qual é o meu? Sou mulher, branca, classe média, feminista, antirracista, de esquerda, brasileira, judia, escritora de livros infantis e juvenis. Há um tempo comecei a sentir desconforto em um desses tantos, sei lá se são, atributos: o de antirracista.

Quando comecei a escrever, na década de 1980, eram poucos os livros que permitiam às crianças e jovens negros se reconhecer e criar autoestima. Pessoas negras eram praticamente ausentes nos livros infantis. Ausentes como questão (racismo, escravização) e ausentes como pessoas, seja como personagens, seja como autores. Honrosas exceções que me marcaram são os livros do grande Joel Rufino dos Santos, o Menina bonita do laço de fita, da Ana Maria Machado e Tanto, tanto, da escritora e atriz inglesa Trish Cooke.

Escrevi um texto juvenil que focava racismo e escravidão e, cheia de dúvidas, antes de tentar publicar, fui procurar interlocução. Fui apresentada ao saudoso professor Percy da Silva que atuava no Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-Brasileiros (GTAAB) da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Ele leu, gostou, contribuiu na melhora do texto e, ainda, me convidou para escrever um conto infantil para a revista que ele estava editando para a Secretaria como parte das comemorações do centenário da abolição.

Publiquei o tal livro. E ele até serviu de referência para uma professora de inglês e português, negra, fazer um trabalho com seus alunos de escola pública e ganhar o prêmio de Professora Nota 10 da Fundação Victor Civita. Ao longo dos anos e da minha trajetória como escritora de livros para crianças e jovens, escrevi outros em que abordava essas questões. A conversa com os ilustradores também sempre foi significativa: muitos se surpreendiam ao perceber que, sem se dar conta, ilustravam preferencialmente crianças brancas, muitas loiras e de olhos claros.

Que orgulho eu tinha da minha militância antirracista! O tempo passou. E com ele, os movimentos negros avançaram, rejuvenesceram, se empoderaram. No mundo dos livros para crianças e jovens, onde predominavam brancas/os, surgiram escritoras/es e ilustradoras/es negras/os. E surgiram reivindicando seu lugar de fala.

Senti que meus livros que abordavam o racismo foram sendo deixados para trás. Confesso ter ficado chateada e perplexa no começo. Fui ler e ouvir Grada Kilomba, Eugênio Lima, Toni Morrison, Chimamanda Ngozi Adichie, Sueli Carneiro e outras/os.

Em Memórias da plantação, Grada Kilomba, artista, escritora e pensadora portuguesa é cristalina: “Não é que nós não tenhamos falado, o fato é que nossas vozes, graças a um sistema racista, têm sido sistematicamente desqualificadas, consideradas conhecimento inválido; ou então representadas por pessoas brancas que, ironicamente, tornam-se ‘especialistas’ em nossa cultura, e mesmo em nós”. A filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro, em conversa na plataforma de reflexão República do Amanhã, reforça: “Nós não estamos absolutamente autorizando e delegando a branco nenhum nos representar e nos dizer como somos e deveríamos ser”.

Gosto de ter escrito livros infantis antirracistas e, em muitas ocasiões, pude constatar a importância deles. Com plena consciência do meu privilégio branco, vou ter que descobrir uma forma de continuar sendo antirracista, em meus livros, sem com isso ocupar um lugar que não é meu. Para mim, um papel passivo e calado, apenas fazendo número em manifestações e colocando o nome em abaixo-assinados, é pouco.

 

Lia Zatz, 68, mora em São Paulo e escreve livros infantis e juvenis,
além de fazer traduções, trabalhos de pesquisa e redação, como a
que fez para o site sobre Edgar Morin para o Portal do Sesc-SP.

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