A partícula de Deus que habita em nós

A partícula de Deus que habita em nós
(Foto: Christian Cravo)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados pelos leitores são publicados de acordo com um tema. O de fevereiro de 2020 é “intolerância religiosa”.


Gustavo A. J. Amarante

Diz-se que os extremos se equivalem: o bem e o mal, o belo e o feio… e porque não a intolerância e a tolerância? Talvez isso pareça estranho, mas a matemática já nos ensina que retas paralelas se encontram no infinito, do mesmo modo que a física põe em perspectiva o tempo e o espaço. Assim, é do ponto de vista da estranheza que desejo abordar este tópico.

Nasci e cresci em um ambiente de religiosidade católica. Haviam freiras na família, estudei em colégio jesuíta e introjetei os valores da fraternidade, da compaixão e do amor ao próximo. Ainda assim, desde muito cedo considerei estranho que o Deus onipotente, onisciente e onipresente pudesse, mesmo que remotamente, ser associado a um senhorzinho de barba branca que habitava as nuvens cercado de anjos.

Estranhei que o Deus de que me falavam pudesse ser, de algum modo, parecido conosco, os humanos cheios de imperfeições tão flagrantes e grosseiras que até mesmo uma criança as poderia observar. Estranhei que este Deus perfeito em todo o seu esplendor pudesse exigir ou mesmo pedir às suas criaturas imperfeitas que atingissem a perfeição do criador. Estranhei que tudo o que configura o que deveria ser um cristão – os ensinamentos do Cristo – era desrespeitado e desobedecido pelos mais fervorosos de seus seguidores. Estranhei a ideia de pecado, forma de cerceamento do livre arbítrio que nos teria sido dado desde o Éden, e segui estranhando todas as pequenas e grandes contradições do cristianismo e das outras religiões também.

Encontrei em Espinoza e em seu panteísmo uma alternativa aos mitos e em Freud e seu ateísmo uma alternativa ao vazio. Encontrei na dialética adorniana o encontro dos extremos e, especificamente no pensamento de Bertrand Russell, o encontro do desprezo e do respeito pelas crenças religiosas. Busquei Tomás de Aquino e Nietzsche, Santo Agostinho e Sartre e Bataille, sem contudo aplacar meu desconforto ou amenizar a turbulência da minha alma.

A realidade, exposta sem misericórdia nos jornais, interdita qualquer chance de paz: budistas matam muçulmanos, islamistas matam cristãos e vice-versa, cristãos e muçulmanos matam-se a si mesmos, judeus matam e são mortos por cristãos e muçulmanos, crenças afro são objeto de escárnio e violência, crenças animistas são descartadas como primitivismo indigno, e finalmente, ainda que não se possa contemplar tudo, o ateísmo e o agnosticismo são tornados ameaças à sobrevivência da família e dos bons costumes.

O que mais se fará em nome de Deus? A mim parece ficar como resposta e provocação a frase de Nietzsche: “Deus está morto. E fomos nós que o matamos.” E agora?

Talvez seja o momento de se crer no humano, no outro, ainda que descentrado, contraditório e ambivalente; acreditar na dúvida e na incerteza e na suspensão da ação; acreditar no pensamento e na cultura como formas que possibilitam transformação; acreditar em transformação. Talvez seja a hora da singularidade de cada um e de todos ser louvada e respeitada, e colocada no lugar da idolatria a sistemas frágeis e perecíveis, muitas vezes injustos e ilegítimos. Talvez tenha chegado a hora de se abandonar as ilusões para poder encontrar a tal “partícula de Deus” que nos habita a cada um de nós.

Gustavo A. J. Amarante, 60, é médico e psicanalista em São Paulo (SP).

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