León Ferrari: crítica, criação e exílio

León Ferrari: crítica, criação e exílio
O artista plástico argentino León Ferrari em 2011 (Foto: Mariano Sandá/Tecnópolis)

 

Há cem anos, mais exatamente no dia três de setembro de 1920, em Buenos Aires, nascia León Ferrari. Iniciada na década de 1950, sua longa trajetória como artista, incontornável para o entendimento das complexas dinâmicas da arte contemporânea, sobretudo em situação latino-americana, foi de fato notável.

Por diversos caminhos, que vão do produtivo diálogo com os espaços e os agentes institucionais da arte ao confronto mais explícito com os fundamentos e os juízos da sociedade ocidental, com efeito, mesmo algumas de suas obras mais críticas e polêmicas tornaram-se – valha a conhecida ironia da história – canônicas (como A civilização ocidental e cristã, as séries Nós não sabíamos, Releituras da Bíblia e Nunca mais, entre outras). E de maneira também marcante, certos procedimentos, materiais e linguagens parecem fazer ressoar com facilidade, hoje, a ousadia da sua singular fatura: difícil não recordar trabalhos de Ferrari quando nos referimos, por exemplo, a colagens, apropriações e montagens; ao uso de arames, garrafas de vidro, baratas de borracha e letraset; a esculturas, escrituras, performances etc.

Nesse sentido, seria válido dizer que Ferrari teria contribuído significativamente para o alargamento, a dinamização e a atual heterogeneidade do campo artístico, por exemplo; assim como igualmente poderíamos afirmar, mas já em chave diversa, que ele teria trilhado o caminho para a contestação da suposta autonomia da arte, valendo-se do atravessamento ativo por outras esferas sociais e da reivindicação estética e política dos mais distintos fenômenos da cultura, mobilizados em torno da crítica do poder.

Isso significa que, em seu trabalho, Ferrari operava numa zona a rigor indecidível, isto é, um espaço rigorosamente poético, onde uma separação talhante entre os fazeres da arte e os demais fazeres da cultura torna-se, não apenas problemática, mas também dificilmente sustentável.

Para Ferrari, uma escultura de arames retorcidos, em aparência abstrata, não deixava de ser também uma espécie de armadilha para conter as violências militares que, nas décadas de 1960 e 1970, sobretudo, tomavam conta do Cone Sul. E uma grande e detalhada planta urbana, composta em escala com os mesmos recursos gráficos e o próprio vocabulário dos projetos de arquitetos e urbanistas, era igualmente a imagem mais acabada da insanidade que habita a vida das grandes cidades.

Uma ambivalência assim exposta é fundamental, a meu ver. Ainda mais: ela pode ser considerada a cifra da obra de Ferrari. Pois a elaboração desse espaço tenso – indissociavelmente estético e político – requer a conversão da negação em método, vale dizer, demanda a invenção de um princípio propositivo que, a fim de não se esgotar, deve trazer em si mesmo o seu contrário. Daí a potência da arte de León Ferrari: a força e a contraforça que em simultâneo movem a plasticidade do seu pensamento e dos seus trabalhos, dedicados, por certo, à criação do inaudito, mas por meio da insistente crítica ao já criado.

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Um episódio, provavelmente um dos mais repercutidos, é mesmo emblemático para o que proponho aqui. Em 1965, Ferrari foi convidado por Jorge Romero Brest, então diretor do Centro de Artes Visuais do Instituto Torcuato Di Tella, para participar da exposição do Prêmio Nacional daquele ano. Não era um convite qualquer. No Di Tella ressoavam, então, as experiências mais radicais das vanguardas argentinas: tratava-se, portanto, de um espaço privilegiado, com vocação internacionalista, espécie de centro nervoso no itinerário de vários artistas na década de 1960.

Ferrari fez o envio de quatro obras: em todas, colocava em questão a lógica do poder político-religioso da civilização ocidental, expondo a sua infinita barbárie. Aquela que hoje é, talvez, a obra mais conhecida de Ferrari – A civilização ocidental e cristã – foi censurada na ocasião pelo próprio Romero Brest. Na montagem, via-se um Cristo pregado sobre a grande réplica de um avião de guerra norte-americano (um FH 107, bombardeiro) posicionada como uma cruz. As outras três obras – caixas como mãos, aviões, crucifixos e bombas – tratavam do mesmo tema: a guerra do Vietnã e a escalada da violência militar dos Estados Unidos.

Embora fossem menos impactantes, as três caixas que foram expostas não deixaram de causar efeitos reativos. Ernesto Ramallo, crítico do jornal La Prensa, escreveu escandalizado a respeito da exposição desses “libelos políticos”. A resposta de León Ferrari, um texto de intervenção, isto é, de posicionamento, apareceu nas páginas da revista Propósitos:

Parece que o cronista quer descartar da arte aquilo que seja crítica áspera ou corrosiva e sugere que se impeça a exposição de obras que “não permitem dúvidas sobre sua filiação e portanto sobre seus fins”. Tirar a crítica da arte é cortar seu braço direito, limitar a crítica ao que não seja áspero ou corrosivo é afogá-la com açúcar; proibir a exibição de quadros porque o espectador pode se dar conta de que o autor é comunista, e seus objetivos são a implantação da ditadura do proletariado, é pretender introduzir a discriminação ideológica na arte, é a censura prévia; esta escultura parece ser de um comunista e parece querer dizer “viva Lenin”: fora! Aquela outra não evidencia cor política: dentro. […] Me preocupa que, dada a forma como o crítico descreve meus trabalhos, alguém possa interpretar que sou comunista e me incluam nas listas negras da Secretaria de Inteligência do Estado, com os consequentes incômodos. Me parece prudente então esclarecer que não sou comunista, que não sou anticomunista, e que me preocupa profundamente a guerra dos Estados Unidos contra o Vietnã.

Para além dos juízos de beleza ou de valor próprios do mundo da arte, quer dizer, para além da importância das formas, a resposta do artista se encerra salientando, justamente, a prevalência das forças, isto é, seus sentidos, seus efeitos:

Ignoro o valor formal dessas peças. Só o que peço à arte é que me ajude a dizer o que penso com a maior clareza possível, a inventar os signos plásticos e críticos que me permitam com a maior eficiência condenar a barbárie do Ocidente; é possível que alguém me demonstre que isso não é arte; não teria nenhum problema, não mudaria de caminho, me limitaria a mudar-lhe o nome: riscaria arte e chamaria de política, crítica corrosiva, qualquer coisa.

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Para alguns artistas, o radicalismo das vanguardas daqueles anos culminou, com a passagem para a década de 1970, no abandono dos espaços institucionais e das linguagens da arte: a vontade de intervenção política e social deu lugar a ações que redobravam a aposta num horizonte revolucionário anunciado, mas que logo se mostraria bloqueado por censuras, ameaças, perseguições, mortes.

Em 1976, em razão da situação vivida após o golpe militar, Ferrari decidiu se exilar com a esposa Alicia e a família (com exceção de Ariel, um de seus filhos, que opta por ficar na Argentina e acaba sendo morto pelos militares). Partem assim para o Brasil, ainda sem certezas sobre o destino. Após passagem por São Vicente, enfim vivem em São Paulo por vários anos.

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A civilização ocidental e cristã, León Ferrari, 1965; obra chegou a ser censurada (Foto: Reprodução)

Durante esse período de exílio, Ferrari não deixou de trabalhar. Ao contrário, estabeleceu uma grande rede de colaborações e relacionamentos (Regina Silveira, Julio Plaza, Carmela Gross, Alex Fleming, Marcelo Nietsche, Hudinilson Jr., Aracy Amaral, Teixeira Coelho, Régis Bonvicino etc.). Criou esculturas, desenhou, propôs interações e performances musicais, envolveu-se em experimentações com as quais pôde explorar linguagens, materiais e suportes distintos (fotocopias, videotexto, heliografias, arte postal, colagens…), expôs em diversas oportunidades, escreveu, publicou – enfim, fez-se presente e atuante de muitas maneiras.

Em 1991, ele e a esposa retornam definitivamente a Buenos Aires. Também com esse trânsito, a notável vitalidade dos trabalhos de Ferrari segue desdobrando-se, em criação e crítica, até seu falecimento, aos 92 anos, em 2013. Vale destacar: nesse mesmo ano, uma exposição do artista ocupa o Centro Cultural da Memória Haroldo Conti, criado num dos prédios da antiga Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), espaço onde funcionou, durante a ditadura militar, talvez o mais emblemático centro de detenção, tortura e extermínio da América Latina (de lá, entre 1976 e 1983, partiam os hediondos “voos da morte”, que lançavam ao mar, nus e anestesiados, os prisioneiros da “guerra antissubversiva”).

Em certo sentido, seria possível dizer que, nunca fechado em si mesmo, aberto sempre aos contatos e aos contágios mais produtivos e intensos, como artista León Ferrari colocou em movimento uma espécie de experiência exílica, rigorosamente afirmativa da vida. Quer dizer, se há uma pena ou um sofrimento imposto pelas violências da civilização, há igualmente, e sobretudo, um exercício, sempre reposto, de buscar a saída, o atravessamento, a abertura; como a reivindicação reiterada, quem sabe, do que há de inapropriável na existência: do que não pode ser contido em campos, fronteiras ou limites.

Nesse caso, nada seria mais preciso do que um texto escrito durante o exílio, Flasharte: Nascimento (1979), e que foi pensado para ser reproduzido às centenas e enviado pelo correio: como uma sorte de dom, uma dádiva. Nesse texto – ele mesmo uma obra conceitual, mas também uma proposição de leitura para outros trabalhos que o artista vinha desenvolvendo, com base na indecidibilidade dos limites entre as artes – é possível reconhecer essa vitalidade em questão.

[…] Esse desenho de luz entre papel e retina, essa forma em seu crescimento explosivo nos milhares de quilômetros que percorrerá cavalgando aviões e satélites, continuará crescendo e mudando de forma alimentada com sorrisos condutas modificadas e rechaços integrados nessa movediça escultura de papel e pensamentos de burlas incompreensões condenações e regozijos. […] Incorruptível indeformável indestrutível apesar ou devido a sua debilidade e transparência, essa escultura de recordações leituras murmuradas não poderá ser modificada em seu passado: tudo o que ocorreu fica e ficará e não haverá força nem ódio nem reza nem urgência estética que possa alterar um só movimento do papel nem a fração de um sorriso, ainda que se retorçam e manchem com dores ainda que se esforcem arrependidos em apagar o que já foi ainda que persigam e roubem imaginações só poderão alterar a pequena parte do futuro que se aproximou deles. É possível fazer um juízo estético de uma obra constantemente inconclusa? Não, porque bastará que dela se aproxime um par de olhos ternos ou doloridos ou luminosos para que um resplendor repare o dano a ferida o erro.

Com esse nascimento – “flash catalisador de relâmpagos que se repetem se refletem se multiplicam e crescem somando vida cor e distância”, lemos em outro trecho – o que está em jogo, em suma, é uma forma de vir ao mundo: uma maneira de abrir-se, continuamente, à contingência das experiências e à disseminação dos seus sentidos. Incorruptível, indeformável, indestrutível, para Ferrari a potência da arte – da política, da crítica corrosiva, ou que nome isso tenha – coincide com a sua falta de conclusão: ela se afirma, sim, como gesto de abertura insistente. Uma vez, outra, e mais outra, ainda.

Artur de Vargas Giorgi é doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor de Teoria Literária da mesma instituição.


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