Laboratórios da perfeição

Laboratórios da perfeição

Os mosteiros deram decisivas contribuições às ciências, num influxo rumo a algo capaz de resistir ao desgaste do tempo e ao envilecimento da rotina.

 

Fuit uir, uitae uenerabilis, gratia Benedictus et nomine, “houve um varão, de vida venerável, por graça Bendito (Bento) e por nome”, eis como Gregório Magno abre a narrativa sobre nosso personagem em seu livro dos Diálogos. Foi este Bento identificado pela tradição como o autor da regra que até hoje traz seu nome, Regula Benedicti. Desde as citadas palavras de Gregório, a seqüência de sua narrativa fornece a representação, sensível e conceptiva, do mestre espiritual, que a história monástica denomina patriarca do Ocidente. Por seus termos, tanto a edificante história, narrada pelo papa dito maior dentre os de seu nome, quanto a regra ao longo de seus 73 capítulos preconizam o advento de um modus uiuendi rigorosamente cenobítico, isto é, modo de ser inserido na tradição monástica que, via Basílio e Pacômio, remonta a Antônio, monge egípcio, cuja legenda, narrada pelo papa Atanásio, é mescla singular de história e mito, é um monaquismo vivido em comunidade.

Ora, a tal título, o que a imagem de Bento, o Patriarca, inspira e o que a Regra normatiza, em sua discreta prudência, é o que esta, com rigor, denomina uma Escola do serviço do Senhor, serviço esse a ser prestado sem alarde, em um silêncio introspectivo, no qual o teor comunitário da ascese cultiva a solidão compartilhada, que a tradição egípcia fizera medrar primeiro qual o solipsismo do ermo. Variando ligeiramente a linguagem, o que se procura, no convívio dos que se isolam sob uma regra e um abade, é a relação interpessoal com Deus, que outrora julgava, e, ainda então, ser favorecida pelo deserto, seja por sua distância de toda agitação, seja por ser a estância própria à luta contra o mal, posta sob a figura do demônio. Há de se convir, na alternância assimétrica entre apogeu e decadência, que tal efeito produziu-se no decurso da história, pelo que se pode aferir do que as aparências manifestam. Nomes de escol podem contar-se entre a geração representada por Gregório I e Pedro, o Venerável, sem se excluírem os pósteros deste último.

Todavia, o monaquismo beneditino não limitou sua ação ou o influxo de sua obra à pura imanência das comunidades que habitaram os mosteiros por ele edificados. É conhecido o serviço que prestou ao resgate do que se herdara da Antiguidade, não só a tardia e cristã, mas mesmo a clássica e a arcaica. Há que se considerar também a historiografia, que tem por patrono um Beda, dito também venerável, sem falar da crônica de tudo o que se cultivou em seus redutos, desde a agricultura à botânica, desde as terapias à medicina então possível, e à própria biologia. E há ainda a recordar as artes, as plásticas e a arquitetura, em vista da vida, expressa no idiotismo conversatio (iteralmente conversação), mas também a música, certamente elemento da oração, porém com  um valor nela própria, a exorbitar o claustro e a fornecer elementos ao que após haveria de dizer-se profano. E há, enfim, as letras, que, instrumentais enquanto necessárias, se fizeram belas ou, como seria mais preciso dizer-se, se refizeram. Tudo isso pode, por obra de uma historiografia mais completa, dos termos mais gerais aqui expressos, desdobrar-se nas espécies destes, até o limite da perfeita singularidade.

A necessária concisão destas páginas, certamente lacônicas, a historiografia conhece e registra, reconhece e transmite em pormenor, na escala que lhe cabe e, em especial, sob sua forma especializada. Quanto a saber qual valor reconhecer-lhe, há que se convir tal juízo depender de princípios, no limite filosóficos, que cada historiador e cada escola pressupõe ou presume. Só não é possível negar tudo de quanto, nolentibus uolentibus, os monges e as instituições se valeram, puseram em comum com os homens de seu tempo e legaram ao porvir. Nestes, tal patrimônio diversificou-se por múltiplas especialidades e revestiu formas sempre mais distantes dos padrões monásticos, encontrando sua cidadania cultural e status civilizatório, de forma análoga à da planta, que, em quantidade, qualidade e forma, tanto difere da semente originante. Daí ser necessário o labor da historiografia para reconstituir a gênese das formas presentes de tal herança e as transformações posteriores aos estágios de produção monástica, a qual, aqui e ali, ainda compartilha de um tal trabalho.

Todavia, esse legado — continente e conteúdo, forma e todo informado, meios e efeitos finalizados — não esgota o impacto da contribuição histórica dos que se puseram sob os auspícios da regra beneditina e invocaram o patrocínio do patriarca. Em última instância, na perspectiva que desenvolveram desde suas fontes (a Regra e o ícone de Bento de Núrsia), todo o montante de um tal legado pertencia ainda à ordem dos meios. Os fins, inclusos os objetivos, eram certamente algo que escapa à verificação mais rigorosa e penetrante, mas, mesmo então, cabe ao historiador dar seu contributo: pode ele discernir o que transparece, qual espírito do espólio beneditino. É-lhe possível captar algo que penetra e se faz presente no movimento da história. Trata-se de um influxo em direção a algo sempre maior e para sempre melhor, a algo mais consistente e capaz de resistir ao desgaste do tempo e ao envilecimento da rotina. Trata-se daquilo que se quis verbalizar no lema atribuído aos discípulos, verdadeiros ou pretensos, do autor da Regra: ora et labora, ora e trabalha.

Ora, isto é, eleva o espírito ao Espírito, ao Deus que é Espírito e adora-O em espírito e verdade (Cf. Jô). Labora, isto é, não apenas ocupa-te para não dares oportunidade ao maligno ou para não te dissipares no ócio meramente passivo, mas produze não apenas a tua subsistência, mas bens que sirvam para além de tua necessidade e para além de tua pessoa, para além de tua comunidade, que sirvam a todo o homem que o quiser, em consonância com o beneplácito divino, ou seja, para além de todo devir meramente humano. Trabalha, isto é, faze que a criação se supere em bens, consistentes e subsistentes, que a natureza não foi programada a produzir sem o homem, mas apenas mediante o homem, na multiplicidade interagente de suas pessoas, na racionalidade de seus sujeitos singulares, em efetiva comunicação uns com os outros. A ênfase no comunitário, na koinonia, fluiu, por múltiplos canais, pelas artérias da sociedade civil, na qual medraram, viveram e se extinguiram, cada comunidade, reforma ou movimento monástico.

E aqui chegamos ao essencial: movimento monástico. O monaquismo, até a Idade Média e seu epílogo, não é só instituição nem o é principalmente: é movimento, a subjazer à comunidade e a extravasá-la em  várias direções, na carne da sociedade englobante e, mediante esta, ao longo de uma posteridade, previsível e imprevisível! Em outros termos, a oração sobressume o trabalho e o Espírito, ao qual aquela eleva, reflui mediante este e o subtrai de vez, mas não de uma só vez, ao preconceito que o queria, sob sua forma material, ônus exclusivo da classe ou casta servil.Trabalhar, doravante, incumbe ao homem e, na perspectiva da regra de Bento, a tornar-se a de toda sociedade, perfaz ou deve perfazer a natureza em tudo o que essa deixou a cargo da imaginação e da faculdade racional, conceptiva do homem. Certamente, isso se fez para que “em tudo fosse Deus glorificado”, mas tal só seria cabível se tudo que o homem viesse a fazer ele o fizesse visando à maior perfeição possível. Assim, desde a agricultura e as atividades conexas, inclusive pastoris, passando pela produção derivada destas, licores e afins, à docência das primeiras letras e desta às formas então vigentes de erudição, foram os mosteiros laboratórios, que dotaram a sociedade de recursos para a vida, mas também de saber. Com efeito, no que a este concerne, não há só a considerar o que difundiu a exemplar schola exterior  claustri — escola exterior do claustro — mas toda a produção, do copista ao historiador e deste ao teólogo filosofante; por enquanto, é suficiente evocar Beda e Anselmo, sem esquecer, já nos limites do fastígio, a grandeza de Pedro Abelardo, monge quasi per accidens — quase por acidente –, mas beneditino com toda certeza. Em suma, uma oração laboriosa e um labor orante, durante o qual, por vezes, efetivamente se orava, extravasaram e exorbitaram os limites da instituição em que se resolveu o movimento herdado de Antão, Pacômio e Basílio.

E há um porque, uma causa para tal fenômeno: o horizonte escatológico em que tudo se fazia à revelia dos equívocos cometidos a respeito e, por vezes, inclusive por meio destes. Com efeito, sob o primado jamais eclipsado da graça, não se perdia de vista que a glória dependia da boa gestão dos dons desta derivados. Ora, tais dons dependiam de um preciso hic et nunc — um aqui e agora — que, ao menos desde a modernidade, chamamos de história, isto é, do proveito tirado do tempo hábil para a salvação, função da escatologia e da glória, a ser nesta alcançada. Se os monges, que monges e quantos monges alcançaram esta glória, há de permanecer sempre uma questão irrespondível, mas o seu legado, difundido primeiro no espaço maior da Igreja, mas depois secularizado, constitui certamente uma presunção a seu favor,

Eis o que, nessas poucas linhas, foi possível dizer, em um nível de simples reflexão, complementar da informação histórica e crítica transmitida pelo artigo de D. Joaquim de Arruda Zamith OSB, sobre a importância do movimento beneditino dentro da história da Igreja, do monaquismo em geral e da sociedade, entre a Antiguidade tardia e o final da Idade Média. Ao que se visou e o que se espera é que tais linhas hajam cumprido a função de ser subsídios para uma apreensão mais adequada de tal movimento e a compreensão devida de seu espírito.

Dom Estevão Francisco Benjamin

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