Em ‘Karen’, Ana Teresa Pereira confunde realidades em narrativa poética

Em ‘Karen’, Ana Teresa Pereira confunde realidades em narrativa poética
A escritora lusitana Ana Teresa Pereira, vencedora do prêmio Oceanos em 2017 (Divulgação)

 

Seu rosto é desconhecido. Sua voz jamais seria reconhecida – ninguém sabe qual é o seu timbre. A sua localização é, ao mesmo tempo, exata e imprecisa: Ilha da Madeira, Portugal. Seu ativo perfil no Facebook é um mosaico de fotos da Hollywood em branco e preto, romântica, plástica e noir. Uma extensão virtual de seu universo literário. Sim, ela é escritora, mas ninguém sabe quem ela é. Seu mistério, contudo, guarda menos perguntas do que o mistério Elena Ferrante. Sabemos que seu nome é Ana Teresa Pereira. Sabemos que vive na Ilha da Madeira. Não dá entrevistas nem vai a festas literárias. É portuguesa e escreve em português de Portugal. Tem mais de vinte livros publicados, um gato rajado e algumas fotos de sua juventude, na qual aparece com os cabelos escuros e lisos, o nariz triangular e arrebitado e uma expressão que guarda silêncios, sussurros e segredos, como Greta Garbo. Sabemos menos, ainda menos, da protagonista de seu primeiro romance publicado no Brasil – Karen (Todavia) –, que fez dela a primeira mulher a ganhar o primeiro lugar no prêmio Oceanos de Literatura. Isso também sabemos dela.

Mas o que sabemos de Karen, a protagonista de sua novela literária? Sabemos apenas que Karen existiu e que viveu, por algum período, em uma casa aristocrática em Northumberland, na Inglaterra. Uma daquelas mansões isoladas, de bailes e segredos, que remete a histórias como Rebecca (1938), da autora inglesa Daphne du Maurier, adaptada para o cinema por Alfred Hitchcock, em 1940, na sua estreia como diretor nos Estados Unidos.

Sabemos que Karen era bonita, casada e, ao que parece, apaixonada por Alan, o homem que casou com ela por interesse. Sabemos que Karen desapareceu e que outra mulher acordou em sua cama e foi chamada de Karen – seria este o nome da verdadeira Karen? Qual o nome da impostora? Ou seria melhor dizer intrusa? Intrusa, fazendo referência a um escritor que paira sobre o livro como a própria protagonista: o escritor americano William Irish, autor de I married a dead man, romance que remete ao livro português ambientado na Inglaterra. Na obra, publicada em 1948, uma mulher grávida – Helen – conhece um casal – Patrice e Hugh – em um trem. Um acidente mata o casal. Ao acordar no hospital, Helen é confundida com Patrice. Para criar o filho recém-nascido, assume a identidade da mulher morta. Tudo vai bem até a carta que pergunta: “Quem é você?”. Ah sim: o livro foi adaptado para o cinema em 1950, tendo como protagonista Barbara Stanwyck. Ah sim: William Irish chamava-se, na verdade, Cornell Woolrich. Autor, diga-se, de Janela indiscreta – que também seria adaptado por Hitchcock nos anos 1950.

A mulher que acorda, é reconhecida e chamada de Karen é pintora e tem um gato – como a autora. Em um caso raro de ficção que se antecipa aos fatos, o gato real apareceu ao final da escritura do livro. A protagonista sem nome é leitora de um William que, tudo indica, seja Irish. O nome completo do escritor está quase ausente no livro.

A trama, em tudo, remete à obra de Irish, que inspirou também uma série de telenovelas brasileiras, entre elas A intrusa, de Gerald Vietri, exibida em 1967 na extinta TV Tupi. Contudo, não se resume a ela. Há também a já citada trama de Rebecca. Como no romance adaptado por Hitchcock, a protagonista não tem nome e vive em uma casa isolada à sombra de outra mulher – morta e de nome conhecido – na companhia do marido aristocrata e da governanta. Em Rebecca, a Sra. Danvers; em Karen, Emily.

Outra história habita a “boneca russa” de Ana Teresa Pereira. “Há duas histórias: a luta do anjo bom e do anjo caído à beira do precipício e a rapariga que se apaixona por um homem na sombra de outra mulher.” Não há como não recordar de Um corpo que cai (Vertigo, 1958), uma das obras-primas do diretor inglês. No filme, John ‘Scottie’ Ferguson (James Stewart) é contratado para seguir uma mulher, Madeleine (Kim Novak), por quem se apaixona sem se saber correspondido. A mulher cai em um precipício. Aparece, tempos depois, de cabelos castanhos e uma nova identidade: Judy. Deixa-se, como a protagonista de Karen, transmutar-se nessa mulher ausente – no filme, morta. Anula sua identidade por amor.

A mulher que tenta se transformar em Karen, além de pintora de abstrações, usava “jeans desbotados e camisolas, o cabelo despenteado pelo vento, uma rapariga livre”. Como Blanche Dubois, a protagonista de Um bonde chamado desejo, vivera muitas “intimidades com estranhos”, citando-a textualmente. Talvez, como no caso dela, fosse “a única coisa capaz de encher meu (seu) coração vazio”, “buscando proteção aqui, ali, até mesmo nos lugares… mais improváveis…”. Talvez guarde a mesma fragilidade, delicadeza e indisposição para a brutalidade com o real. Afinal, é uma mulher que vive entre pincéis e pinceladas, música e livros e vê Londres, no início do livro, como um “cenário criado em estúdio”.

Se, em Rebecca, a protagonista sabe-se intrusa desde o dia em que chega à casa do marido, em Karen essa consciência é formada conforme a jovem sem nome se transmuta na “jovem com o vestido vermelho”. O ápice se dá no baile de aniversário de Karen – os 25 anos da protagonista desaparecida. A tomada de consciência remete à outra mulher criada, a Eliza Doolittle, da peça Pigmaleão (1913), de George Bernard Shaw, adaptada por George Cukor para o cinema com o título My Fair Lady (1964). A florista que se torna dama abandona seu criador ao se dar conta, depois de um baile, de que era apenas o projeto de um homem aristocrático e ensimesmado.

Em Karen, a tomada de consciência é expressa na palavra intrusa. Quase ausente no início do livro, torna-se quase onipresente em suas páginas finais. Na obra, contudo, não apenas protagonistas se confundem. Realidades se confundem. Ficções se confundem. Tempos e cidades se confundem. É a velha suspensão da descrença – base de toda ficção, hoje quase esquecida – em seu limite e poesia. Em Karen, como em Hitchcock, você não encontrará fatias de vida.

 


DANILO THOMAZ é jornalista

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