Tradução inédita de única peça de teatro de Kafka é publicada em coletânea

Tradução inédita de única peça de teatro de Kafka é publicada em coletânea
O escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) (Arte Revista CULT)

 

Um jovem príncipe, novo em seu posto, fica subitamente interessado nas tarefas de um simples guarda – que há 30 anos cuida da cripta de um duque. Enquanto o monarca se sensibiliza com o velho e tenta ajudá-lo, alguns membros da corte, descontentes com o comportamento do líder, pensam em tramar alguma forma de revolta.

Única peça de teatro escrita por Franz Kafka (1883-1924), O guarda da cripta é um texto pouco conhecido no Brasil. Originalmente publicado em alemão, em 1917, foi traduzido pela primeira vez do inglês, em 1985, na coletânea Descrição de uma Luta (Nova Fronteira), então sob o título O guardião da tumba. Desde então, a peça não fez parte de outras compilações do autor no país e acabou praticamente esquecida entre seus escritos mais famosos.

Em 2018, o drama foi recuperado – pela primeira vez com tradução direta do alemão – como parte da recém-lançada coletânea Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias (Civilização Brasileira), da qual fazem parte outros 35 escritos de Kafka, todos contos, publicados entre 1907 e 1924.

A tradução e a organização de Blumfeld ficaram a cargo de Marcelo Backes, crítico literário, escritor e doutor em germanística pela Universidade de Freiburg (Alemanha). Ele conta que a escolha da peça para compor a coletânea se deu pelo “desconhecimento do público brasileiro sobre o Kafka dramaturgo” e pela falta de interesse dos leitores nacionais pelo gênero enquanto literatura.

“No Brasil, diferentemente da Europa, lemos pouco teatro. Preferimos assistir às montagens das peças. Achei que poderia ser uma boa oportunidade para apresentar ao país o único drama de Kafka”, afirma o tradutor à CULT.

Mas a importância da peça vai além do seu desconhecimento no Brasil. Segundo ele, O guarda da cripta traz ao público um dos personagens mais kafkianos do autor: o príncipe. “É um protagonista que se mostra incapaz de tomar qualquer decisão imperiosa, está confuso com o estado das coisas, parece querer algo como uma democracia mesmo em um reino em que, aparentemente, só a ordem autoritária funciona – como boa parte dos heróis do autor”, explica.

A angústia do príncipe serve de justificativa para uma tese que Backes desenvolve no posfácio de Blumfeld: a de que todos os protagonistas de Kafka correspondem “à mesma figura interior problemática”. “Sejam eles um cavalo de batalha, várias árvores, uma ponte fracassada, como no conto Uma ponte, ou uma criança na estrada, são vítimas de um enigma insolúvel: o da própria vida num mundo que não faz sentido”, escreve.

O guarda da cripta ilustra bem a teoria de Backes. Na peça, ficam perceptíveis “a ausência de esperança, a ilusão de soluções, a falta de qualquer ajuda – mesmo quando ela poderia, teoricamente, ocorrer – e a impossibilidade de se adequar a um mundo abstrato demais”. Até mesmo a última frase da peça, “o outono está mais triste do que nunca”, poderia, para o tradutor, resumir toda a obra kafkiana. “É a verbalização da falta de perspectivas de um futuro”, completa.

A angústia aparece não só na peça e nos contos da coletânea, mas em toda a obra do autor – inclusive nos seus personagens mais famosos, como Josef K., de O processo (1925), que se percebe atado a um processo jurídico incompreensível e inexplicável; ou Gregor Samsa, de A metamorfose (1915), que não entende como ou por que transformou-se em um inseto monstruoso. Ambos, resume Backes, encontram-se sem saída e não compreendem as razões por trás disso.

“Em toda a obra de Kafka, os personagens não conseguem acessar aquilo que os faz sofrer. Há uma desconexão entre a liberdade interna e o que se observa no mundo exterior”, afirma o tradutor. “Uma coletânea que quisesse expor isso teria que ter todas as obras do Kafka, incluindo não só a peça, como também seus romances, seus contos e até mesmo seus diários e cartas.”

Errata: ao contrário do que publicamos anteriormente, a peça O guarda da cripta não é inédita no Brasil. Ela já havia sido publicada em 1985. Inédita é sua tradução direto do alemão.

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