A pós-indústria da infantilização digital

A pós-indústria da infantilização digital

 

I Preâmbulo
Imagens digitais e violência simbólica

 

O processo estrutural de infantilização da cultura, lastro lúdico recente da história ocidental, assumiu, ao que parece, estirão veloz e ad infinitum. Essa dissuasão risonha, que, como qualquer gargalhada, sempre nubla a tendência diuturna do ente à morte, tem se tornado cada vez mais robusta: há anos, perdeu todos os escrúpulos e se globalizou.

Quando, ao longo do século 20, a indústria da comunicação de massa detinha o monopólio legítimo da expressão mediatizada, programas escabrosos de auditório e de humor grotesco penduravam (e ainda o fazem) guirlandas coloridas no bilionário negócio da regressão psico. Essa retroação comercialmente induzida coopta aspectos infantis da memória e da socialização dos indivíduos sem que haja, porém, acompanhamento de simbolização (isto é, de trabalho de conscientização) simultânea e necessária. Na passagem para o século 21, depois que massas aderiram às tecnologias digitais miniaturizadas e que, com a proliferação de smartphones e tablets, instâncias pós-industriais de articulação interativa (como plataformas abastadas de relacionamento e participação, empresas de inovação e empreendimentos similares) condicionaram – e, portanto, passaram a incentivar – posts, comments, tweets, whats, stickers, gifs, repasses etc., a celebração “democrática” da puerilidade como international trend (tudo na língua franca, para assestar a atenção) não tardou, em regra, a regular as manifestações e reações individuais em rede, inclusive as de adultos e idosos. Tendências psicoemocionais expressivas de faixas etárias pré-púberes irromperam suspeitamente free, em fluxo de graciosidade espalhada, com aparente alegria genuína, justamente numa época (de algumas décadas, aliás) marcada por carência desesperada de humor compensatório. A explosão dessas interações oleadas pelo riso (com frequência, caçoador), pelo chamado “bom humor” (muitas vezes, de natureza discutível) e/ou pelo entretenimento (frequentemente a qualquer custo) não sintomatiza senão o cansaço infeliz em relação aos cacoetes da razão tecnocientífica (como modelo pretensamente maduro de visão de mundo), à seriedade burocrática e simulada (como perfil profissional credível, de “inteligência emocional”), ao acachapante imperativo da produtividade individual (a dromoaptidão, propensão neurótica a ser voraz e eficiente no cumprimento de atividades, como valor de “responsabilidade” supostamente universal), e parentela extensa.

Nesse âmbito, a infantilização pós-industrializada da cultura envolve miríade exponencial de figurações digitais: caretas e poses engraçadas, de pessoas, animais e objetos antropomorfizados; momices de personagens de estória em quadrinhos; bonecos “fofos”, cute, de efeitos espirituosos e jocosos; recortes musicais e frases para os mesmos fins, e assim por diante. O conjunto envolve, especificamente, imagens editadas ou retrabalhadas, não raro com função de meme, peça digital de violência simbólica desferida (e obliterada) sob a capa de chiste pretensamente inofensivo e que se irradia através de redes interativas. Sob colagem de fatores figurativos, sonoros e/ou textuais, extáticos ou em movimento (vídeos e gifs), esse mosaico implica menos os emojis, alfabeto icônico japonês para representar sentimentos particulares em correspondência digital.

II Fetichização imagética e idiotização tecnocultural
Violência invisível contra crianças

 

Todos esses signos se servem de, ou visam cultivar, laços de afeto sob relativa garantia de empatia imediata, reação alegre e conforto emocional. Essa fetichização imagética, relativamente padronizada no pressuposto intencional (isto é, ao nível da propositura para usabilidade), especialmente em grupos ou listas de celulares, além de contribuir para calcificar emoções em rota estética conservadora e reducionista, representa, do ponto de vista psicoemocional e da relação com a existência, a queda irrefletida de um pátio intelectual inteiro – mais um –, em ladeira subcultural conhecida: desafortunadamente, essa oferta imagética não deixa de (re)fomentar até mesmo uma idiotização tecnocultural tardia, egressa desde, pelo menos, a segunda metade do século 20. Nem se evoque a piora da ribanceira ao se constatar, na trilha agora de uma violência estrutural e invisível, que essa fetichização sígnica inclui, como divertidos adornos (em arco de gargalhada anedotária), tradicionais abusos estigmatizadores – típicos do conservadorismo-clichê do bullying – contra a imagem de crianças propriamente ditas (para não citar também a de animais, caros a legiões de cuidadores).

Por paradoxal que seja, essa tendência emerge, direta ou indiretamente, do rol de feitos da badalada “indústria criativa”, banho terminológico-positivista de marketing em prol da aceitação de novas configurações organizacionais do grande capital.

Em países abissalmente desiguais, como o Brasil, ou com conflitos macroeconômicos internos muito agudizados, como os Estados Unidos, a disputa agonista entre reacionários, conservadores, liberais e socialistas (para ficar somente com estes, no espectro convencional da política) se traduz, com pouca trégua, em agressões simbólicas, provindas de todas as partes, nas redes digitais. Mais ainda, pertence, como se sabe, às lutas por poder (em contexto polarizado ou não) nutrir-se, em algum grau de intensidade, de várias formas de violência e de seus tipos de morte – desde simples signos mobilizados até o molestamento do corpo alheio. Em escala de massa, antes da veracidade factual e da ética, a vítima usual, nesses contextos, é sempre a alteridade, em acepção múltipla: as engalfinhadas na batalha, as milhares de testemunhas de retaguarda e apoio tácito, e os milhões de inocentes.

No caso das mencionadas figurações digitais, essas observações (em torno da violência), aparentemente genéricas e abstratas (em sua função recordativa), não se referem, nem de modo indireto, a quem se implica na berlinda da disputa política (com ou sem armas); remete, ao contrário, à imagem, por exemplo, de crianças anônimas instrumentalizadas – de forma adulta… – para fins de sociabilidade via redes digitais.

O acentuado uso de tecnologias e redes digitais móveis, particularmente smartphones e tablets, sob o drama da Covid-19 e suas variantes – um uso, muitas vezes, para escape glocal da morte virótica (glocal: nem local, nem global, antes entre eles, no “tempo real” da comunicação eletrônica) –, não fez mais que evidenciar essa tendência à infantilização naturalizada, sem acrescer-lhe nada de essencialmente diferente, exceto o significativo excesso do resultado.

Socialmente esparramada, essa febre pueril atravessa distintos modos de apropriação e uso desses media e sua espiral de conteúdo. Independe – vale enfatizar – se esses procedimentos se alinham ou não a vertentes político-partidárias. Fundamentalmente, ligam-se à natureza psicoantropológico-regressiva das imagens produzidas e irradiadas. A pragmática política é apenas ingrediente de um processo cultural mais vultuoso.

III
Nazismo, morte simbólica e extermínio

 

Os alinhavos anteriores ensejam uma tematização específica – e necessária.

O nazismo, a rir dos outros, preferia arruinar fisicamente suas vidas. Essa investida, cavada no estrato material da existência e na esteira histórica de guerras a fio, abriu precedente sociodromocrático com perigosíssimos efeitos permanentes. Dromos, partícula fórmica grega, liga-se, no limite, a processos de velocidade. Essa evocação à obra de Virilio, fundador da sociodromologia fenomenológica, coloca em perspectiva o quanto o desempenho ultradepreciador dos nazistas foi macabramente eficiente: o 3º Reich domesticou a velocidade com uso primitivo de gás e fogo, e a mobilizou industrialmente em prol da produtividade da matança. Ao institucionalizar e profissionalizar a aceleração mortuária da estigmatização, o nazismo confirmou que o ódio zombeteiro à alteridade – para além de inimigos e adversários – faz menos sentido depois da posse dos meios para exterminá-la. O 3º Reich, rechaçando diversidades e desvios ao espelho ariano, enveredou para o genocídio propriamente dito.

Em sintaxe invertida e recontextualizadora – evocativa da crítica social de Baudrillard e Bourdieu –, a morte simbólica existe de forma absoluta ou exclusiva somente quando a eliminação física (no limite, a “limpeza étnica”) encontra óbice político, legal, religioso e/ou moral, ou mesmo se se coloca fora de questão por pressões civilizatórias similares. Atingindo alternativamente corpos sem levá-los a óbito, a iniciativa de morte simbólica equivale a uma corruptela imaterial do extermínio. Mata-se a alteridade em vida ao se agredir sua identidade, sua história e seu modus vivendi. Ela é abatida esfaqueando-se sua autoimagem e fazendo sangrar sua autoestima – numa palavra, arrasando-se sua potência.

Essa condição mostra que o homicídio, tomado em seu étimo (violência a homo) e em sua dupla dimensão sociofenomênica (corporal e imaterial), é, no fundo, sistêmico e, nessa escala, assume várias configurações. Racismo, xenofobia, etnocídio, homofobia, misoginia, aporofobia e quejandos são parte do opróbrio, por refração simbólica dos confrontos e choques físicos, fatais ou não.

Sem surpresa, a lógica dessa agressão está presente no marketing de guerra aplicado à disputa de poderes de Estado. Há muito, esse “negócio” não blinda mais o segredo de sua eficácia, a saber: a destruição total de reputações mediante linchamento público, com depenação diária da vítima na visibilidade mediática, a cada vez mais intensamente e, se possível, de modo diversificado. O velho procedimento somou, como recursos mais recentes, fake news e desinformação estrutural, à base de inteligência artificial e robótica online. O que era apenas suplemento paralelo e astuto de campanha em meios de massa tornou-se majoritário, a ponto de atualmente dar as cartas em processos eleitorais e de preservação de poder.

A posse dos meios de extermínio físico, entretanto, não suspende a implementação (mesmo sistemática e em larga escala) da morte simbólica. A violência imaterial pode mudar de feição e subordinar-se às vias táteis, mas tende a se acumular à violência corporal. Em rota contrailuminista, o 3º Reich, putrefação plúmbea e invisível da política, permanece como o sintoma estrutural limite desse redobramento magmático da barbárie.

A programação nazista da morte simbólica como bandeira de Estado (em sua expressão antissemita e xenofóbica) prosseguiu amplamente naturalizada na propaganda política, através da utilização de meios de massificação disponíveis (sobretudo radiofônicos, fotográficos, cinematográficos e jornalístico-impressos). A produtividade da destruição supremacista precisou da velocidade de propagação, assentamento e reprodução ideológicos, desde a segunda década do século 20 – fase de preparação do golpe de Estado hitlerista – até o final dos longos anos de consumação estatal.

A partir de 1945, nas hostes pró-nazismo, a aplicação da morte simbólica – na forma de indiferença canina, desprezo lesa-humanidade e/ou zombaria à alteridade – voltou a vigorar de forma absoluta. A catástrofe material de uma guerra, quando finda, não interrompe flagelos acompanhantes – e um deles, indelével, é a negação do reconhecimento ao outro: a previsão de matar, destilada em signos de todos os matizes, é – lembre-se – meio passo, represado ou não, para a invasão do corpo-alvo. Hoje, teimosamente, neonazis tentam, em córregos digitais de seita não tão clandestina, reescrever a história, sob a flâmula da morte simbólica aos inimigos. Se esse sinistro, em suas cepas atuais, tiver novamente atmosfera social-histórica, recursos políticos oportunos (incluindo sufrágio de populações e parlamentos incivis) e meios tecnológicos adequados, não hesitará em subordinar a morte “meramente” simbólica ao extermínio puro e simples, com clava mais vingativa.

IV
Fascistização normalizada das relações sociais

O tratamento lesa-humanidade sistematizado pelo nazismo fez léxicos transnacionais justificarem desdobramentos semânticos: não é equivocado nem inverdade registrar que, emparelhando milênios de truculência racista e xenofóbica, escarnecer do outro constitui, modernamente, prática tipicamente fascista.

As consequências devastadoras desse ato de arruinamento somam luz à veracidade factual da “morte sem óbito”. O bullying, extermínio simbólico já mencionado, não deixa de ser “diversão” fascistoide, embora, como fenômeno, possa ser tão antigo quanto a história das relações cotidianas desviadas da dignidade (em acepção constitucionalmente vinculada à noção de pessoa e de cidadania). A desconstrução indiscriminada de reputações, com mentiras ou não, pertence à mesma circunscrição, entre outras práticas de “carnagem” alheia, feitas diretamente na visibilidade mediática, em segmentações mainstream.

Essa fascistização normalizada das relações sociais soa tanto mais covarde (para utilizar termo diplomático) quanto mais se valha de expedientes multiperversos: uso motejador da imagem do outro à sua revelia, inserção leviana de seu nome em contexto coletivo (fora de alcance da vítima), derrisão em sua ausência, e assim por diante.

Ouça-se a potência autoritária do próprio fenômeno, traduzida literariamente em seu delírio de suposta autocrítica: a violência simbólica, se pudesse ser “democratizada” fora dos marcos da covardia, alegaria, em discurso ocluso, que as gentes devem rir não de inocentes e vulneráveis, mas de quem possui as mesmas armas de autodefesa, com possibilidade, ao menos, de igual riso, redentor em relação à agressão. Segundo esse princípio (tão hipotético quanto embaraçoso), quem escolhe voluntariamente frentes de batalha justifica a viabilidade de ser alvejado. Sorrateira, a violência simbólica, porém, escapa a qualquer condição similar de partida: a reificação de sua hierarquia incorpora, de fato, covardia; como em todo conflito bélico, ela alveja inocentes e vulneráveis, desprovidos dos mesmos recursos de revide.

O arco dilatado de vítimas da violência simbólica, também pela incidência de efeitos espalhados, decorre, obviamente, de condições de violência invisível e prévia, materializadas em interações internamente desiguais e/ou em contextos estruturais díspares em que as relações interpessoais se desenvolvem. Essa dependência de dessimetria social a priori – pode-se conjecturar – fez a pilhéria ou jocosidade mais aparentemente inofensiva alimentar prole sinonímica extensa. Do gracejo à troça, do sarcasmo ao deboche, da galhofa ao achincalhamento, todos esses atos exercitam graus variados de menoscabo, apanágio cifrado da morte. Diante da ridicularização do alheio e sob os riscos de tintas tônicas, o abraço à ética, como se sabe, não perde a oportunidade de demarcar seu lugar de fala, dissolvendo dúvidas: o que avilta vidas – seja o que for e com quais meios for – cultua, no altar do vilipêndio, a infâmia do mundo.

Quanto à manifestação figurativa dessa violência – um fascismo coisificado e, ao mesmo tempo, “lavado”, portanto “inexistente” – no âmbito pragmático dos símbolos digitais (caretas e momices, picotes sonoros e frases, de memes ou não), possa a farta empiria imagética socialmente corrente, diversificada e fácil de ser encontrada na palma das mãos, cobrir per se os demais aspectos problemáticos dessa delicada febre. De certa forma, essa imagérie – aqui apenas reportada, para efeito de esclarecimento público –, tem a proeza de compensar os rigores de um detalhamento desnecessário. Em virtude da natureza da questão, o procedimento talvez consumisse tempo demasiado de leitura. As próprias imagens patenteiam, no mínimo, a regressão implicada, ao entregarem diretamente o ouro.

V Infantilização sistêmica e infantilidade pragmática
Vilipêndio à infância

Esse último apontamento, no rastro das relações presumidas entre práticas fascistas, morte simbólica e infantilização pós-industrializada da cultura, retoma o caso da agressão contra a imagem de crianças em interações digitais.

A prova de ausência de qualquer substrato pessimista (de tipo “politicamente correto”) nas observações feitas repousa numa diferença elementar: uma coisa é a valorização cultural e não-comercial da infância – uma valorização fundamental –; outra coisa é a infantilização generalizada, sistemicamente provocada, a título de pretenso valor relevante.

Nesse sentido, merece, certamente, mais crítica a oferta corporativa de iscas imagéticas para explorar propositalmente essa infantilização do que o uso infantilizado dessas mesmas “figurinhas”. Em regra – conforme visto –, a infantilização estrutural se estabeleceu como tendência importante na cultura ocidental. Na busca por “inovação”, os empreendimentos de produção simbólica no universo digital – de startups a organizações consolidadas – fustigam esse horizonte em prol de hegemonias de linguagem cibercutural, em meio à concorrência entre alternativas icônicas. Seja como for, essa exploração não isenta de crítica o próprio uso massificado e reativo, uma vez que ele é bom condutor do que deveria, antes, ser interceptado pela sensibilidade crítica, e evitado. Em países democráticos, são livres tanto a adesão à violência imaterial silenciosamente subsumida na iconografia para smartphones e tablets, quanto a prática de repasses e circulação de peças imagéticas com tal agressão invisível. Não sem motivo, a iconografia pós-industrial infantilizadora das relações sociais – violentamente graciosa contra crianças – segue de par com a infantilidade trocista em segmentações digitais de interação. A síntese do processo não envolve nem pedofilia, nem pedofobia, tampouco alternativa intermediária igualmente nefasta. Tudo é muito imperceptível para ser considerado crime ou patologia, quanto mais violência, infantilização ou puerilidade.

As franjas integradas do processo – a infantilização sistêmica e a infantilidade pragmática – não guardam nenhuma relação com qualquer condecoração à infância como valor cultural de socialização, nem com homenagem a faces e corpos utilizados nas interações. Ao contrário, essa oferta iconográfica e o tipo majoritário de seu uso vilipendiam a infância ao subordiná-la a um caudal de regressismo psicoemocional que, não sem frequência, converte a alteridade num objeto. Na linha que se estende do mero sorriso irônico até a chacota severa, as duas franjas generalizam depreciações na velada fronteira com a injúria e/ou com a difamação extrapenais. Doravante, ambas as franjas se encontram turbinadas numa condição histórica e sanitária tecnologicamente mediada pelo medo do contágio pandêmico.

Há quem pense que as injunções sociotecnológicas que condicionam ofertas imagéticas e práticas interativas dessa natureza têm a ver com liberdade de empreendimento e expressão. Lamentavelmente, esse raciocínio neoliberal e frágil comete, pelo menos, cinco falhas: cochila a respeito dos interesses pós-industriais no plano simbólico; lança vistas grossas às repercussões deletérias das applications (apps) e plataformas de interação; ignora fundamentos éticos elementares da liberdade de expressão, que exigem ausência de dano a outrem; não enxerga agressão sutilizada no âmbito da “normalidade” das relações interpessoais; e joga em favor da reprodução diuturna da violência e da morte simbólicas, que transitam na palma de suas mãos. O discurso que advoga liberdade incondicional para práticas de humor contra alteridades, instrumentalizando, por exemplo, rostos e bustos de crianças para “alegrar” interações, soa tão indecentemente lógico quanto rimar deuses e guerra ou mobilizar os primeiros para justificar a segunda.

VI
Armadilha Big Tech e neofascismo algorítmico

 

A biopolítica, quando reescalonada a tendências da cibercultura, não tarda em reconhecer, no bojo das duas franjas, o traçado da captura empresarial de carências vitais por expressão de afetos nas interações sociais. Essa vertente teórica também computa a cedência voluntária a tal captura, menos por gozo autêntico de partilha em redutos digitais do que pelo alívio de escapar ao terror de exclusões e segregações tecnológicas de época.

A dimensão sociopolítica dos aspectos práticos aí implicados fica obviamente de fora da (ou não se traduz inteiramente na) terminologia ultrabanalizada da fase algorítmica do capitalismo. Em geral, o palavreado corrente (técnico ou não) silencia sobre o assunto. A lacuna abrange a esmagadora maioria dos discursos usuais no circuito massificado do jornalismo conservador e liberal.

O aproveitamento comercial – comezinho, é verdade – de misérias emocionais cotidianas (e cuja origem se perde em etapas pregressas do capitalismo industrial), bem como a adesão às supostas benesses ou facilidades da algoritmização customizadora, realizam-se – vale sublinhar – “dentro” e através de espaços de meganegócio hegemônicos neste século. Enquadrados nas chamadas Big Tech (no que tange aqui ao seu braço de exploração da virtualidade), esses empreendimentos privatizam, no todo, por operações segmentadas, o espectro eletromagnético à sombra da falaciosa gratuidade de acesso e participação. O processo, já muito conhecido, equivale a uma operação destrutiva, típica da visão neoliberal de mundo e mobilizada para todas as ramificações do ciberespaço: além de sofisticar a corrosão privatista da dimensão pública dessa espacialidade de interação e convívio, a doce surveillance sistemática – a vigilância de rastros, perfis e dados, embrenhada no processo – atenta, informal e insidiosamente, contra o princípio da democracia e das liberdades civis, a pretexto de promovê-las. O escambo simbólico, protagonizado por essas plataformas, que condicionam a cedência de dados de privacidade em troca da possibilidade de aparecer (como forma de suposto poder), de agir à distância e de se relacionar, não deixa de se amoldar à linguagem da chantagem – traço de terror invisível –, acompanhada de “sequestro autorizado” de informações para fins desprovidos de transparência.

Não incidiria em equívoco quem, na esteira de Kroker e Weinstein, catalogasse esse estado de coisas como progresso do fascismo infotecnológico, hoje em sua toada AI (Artificial Inteligence) e robótico-virtual. Desde meados dos anos 1980, esse tipo furtivo de fascismo abocanhou o ciberespaço com softwares matriciais e “amigáveis” e, neste século, continuou a toada, com outras inovações e sob pomposos selos eufêmicos: “modelos de negócio”, “plataformas de relacionamento, participação e compartilhamento”, “redes sociais” etc. Por certo, seu movimento megacorporativo não é da mesma ordem corrosiva do neofascismo que, nos últimos anos, espraia negacionismo, fake news e desinformação. A política do neofascismo algorítmico, no entanto, fala a mesma linguagem problemática quando se considera um de seus pomos mais delicados: a rapinagem de detalhes envolvendo a privacidade de milhões usuários, constitucionalmente protegida em democracias consolidadas.

Não por acaso, a armadilha Big Tech, tão estrutural quanto idiossincrática em cada ato digital customizado, promove, ela mesma, de forma aparentemente aleatória, padrões de ciberexpressão com “tensão melíflua” em relação ao status quo: ao fim e ao cabo, propende para ratificar as condições infotecnológicas vigentes. Essa injunção eleva o paradoxo à hipérbole: qualquer grito de dissonância consistente germina numa seara que tende simultaneamente a neutralizá-lo.

Emblema de processo sociotecnológico não programado por qualquer órgão central, apesar de sua natureza sistêmica, a infantilização pós-industrializada da expressão de emoções (reduzidas a mera pista indiciária, a simples “dica” icônica) não poderia evidentemente senão atrelar, com laços pré-simbólicos e açucarados, a subjetividade individual à reprodução social-histórica da civilização interativa em curso, fase planetária do prisma multicapitalista de mundo.

Certamente, essa tendência socioestrutural demonstra que poucas décadas se passaram para que houvesse algum aprendizado coletivo importante a partir das principais teses da crítica aos meios de comunicação de massa e à sua cultura industrializada. É indiferente, porém, o quantum de tempo. Qualquer transferência de legado – neste caso, visando uma relação mais ponderada com os media digitais, seus conteúdos e sua cultura – seria improvável ou incerta mesmo passadas décadas ou séculos. Crucial, a crítica sempre se circunscreveu a públicos diminutos – em geral, a elite do saber contestatário. Acadêmica ou jornalística, ela não costuma produzir atmosfera extensa; nunca se assumiu (nem, ao que parece, se assumirá) como cartilha política stricto sensu.

No mais, há boa notícia, advinda dos grotões da história: tendências autoritárias (regionais ou transnacionais, explícitas ou camufladas) pretendem sempre embotar a vida de totalidades populacionais, até às raias utilitárias da idiotia. Nunca o conseguiram, seja por completo, seja de forma permanente. Por motivos de sobrevivência, tão profundos quanto controversos, a tessitura da sensibilidade humana, além de coletivamente indomável, tem diapasão alargado e diverso.

Eugênio Trivinho é Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).


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