(in)corporatura – a exposição

(in)corporatura – a exposição

Marilu Beer, esse cielo azul 2

A arte só existe quando ultrapassa sua teoria, quando rasga cortinas e vidraças, máscaras e faces, quando perfura o aço das pré-concepções

E quando a arte não nos diz mais nada? E quando falar em arte se torna quase um absurdo? Nesses momentos em que a arte e seu conceito são abandonados ou se tornam irritantes no campo do senso comum, refaz-se o seu desafio constitutivo: dizer aquilo que não se deve dizer e, por isso mesmo, é preciso dizer, enquanto, ao mesmo tempo, não se trata de modo algum de algo que apenas se diz.

Assim como o conceito de política, assim como o conceito de ética, a arte só existe quando ultrapassa sua teoria, quando rasga cortinas e vidraças, máscaras e faces, quando perfura o aço das pré-concepções. Quando seu dizer é fazer, ou melhor ainda, quando seu fazer é concretizar-se na forma que lhe concerne, a de um aparecer.

Esse aparecer nada direto, e nada reto, como um dizer sempre dobrado e desdobrado, nos lança em viagem vertical, uma viagem para dentro de nós mesmos a partir da obra que nos vem de fora. A arte em sua configuração abissal confirma-se como densidade, como corpo. É toda uma in-corporatura que está em cena. Ela veio do chão, do céu, do teto, dos lados, ela veio do fundo, do meio e veio também de algum lugar inalcançável aos sentidos. Ao chegar, essa coisa que veio se fazer método e obra, nos capturou como em um rapto ontológico.

É engraçado falar assim. Não é o ser que somos que é roubado, é o ser que não somos que nos rouba de algum modo. Isso só acontece se estamos, como uma Perséfone desavisada, a passear felizes no conforto da superfície e, de repente, desprevenidos dos perigos subterrâneos, não vemos que somos observados pelo olho desejante de um deus obscuro, um deus da forja, dos metais, dos trabalhos torturantes, dos ínferos, um deus cocho, dos tropeços, um deus que ocupa o lugar do Dionisos dançante, com o qual costumamos associar a arte. Um deus que tem a ver com os travos, com impedimentos, com construções dolorosas. Esse deus que sempre passa pela vida dos artistas e deixa marcas estranhamente generosas no meio das dores: as obras. Um deus da in-corporaturas que nascem densas, rasgantes, intensas.

As obras são corpos de imagens, como que fantasmagorias concretas, evidências e vidências. Elas nos pedem para pensar. No lugar, quantas vezes oferecemos apenas teorias? A relação que a arte tem com sua teoria é a do inseto que deixa seu exoesqueleto, a do fantasma que atravessa o espaço como se não dependesse dele. A arte fica, ela é. A teoria passa, cansada, incapaz de fixar seu movimento, seu tempo, seu anseio.

A arte fica nas obras como uma marca d’água, difícil de ver. Mas não só. Há algo na obra que sempre é pedra. Um escombro que, reerguido, torna-se monumento, ou melhor, anti-monumento. A arte existe como obra quando vai além do esperado, e além do meramente possível. Naquela intensidade do que hoje andamos a chamar de potência. Como uma verdade histórica, uma presença que vem a ser, um fato material e corporal, algo que nos chama a testemunhar, a arte nos atinge. Como a mão de Plutão que nos chama aos ínferos sem que tenhamos outra alternativa. Lá está a matéria legível, mas ainda assim incompreensível do corpo. Toda densa e toda sutil, sendo e não sendo, matéria e espírito, a arte nos comove. De tão concreta, uma espécie de realidade, no entanto, irreal, a arte é o irreal que veio a ser seu outro.

Se o real é o impossível, a arte é o seu acontecimento. Um acontecimento no tempo e no espaço, experiência e sinal. Sortilégio que, de vez em quando, nos faz ver o que é e o que não é, ao mesmo tempo. Uma pergunta e uma resposta enlaçadas no mesmo lugar. Aquilo que, como a vida, não era para ter acontecido e, no entanto, está aí. Algo da ordem do desestabilizante.

O que na arte nos incomoda é sempre a impotência, legado da coisa, justamente quando estamos diante da obra. Vemos a obra e ela nos chama para um outro lugar. Não compreendemos seu chamado porque esquemas prévios constrangem e limitam a potência da linguagem à qual raramente estamos abertos. Nossa primeira, essencial e fundamental prisão é sempre a linguagem. Limitar a linguagem, sempre soubemos, é limitar o corpo e todo o existir.

O incômodo, quando bem vivido, é insurgente, é libertador. Esse incomodo é a in-corporatura da obra. Seu estar no mundo. Ele é a linguagem do outro, que é também convite para nos livrarmos de imposições, de constrangimentos, de vergonhas, de medos, das tristezas da impotência que caem sobre nosso corpo. A experiência da arte nos escapa como nos escapa nosso corpo quando nos isolamos em processos mentais, em falsas torres transcendentais, nesses excessos de linguagem banal, de clichês, usando ideias repetidas, frases feitas, esquecidos de que o mundo nos diz e do que dizemos dele.

A obra é só pra fazer lembrar, podemos dizer com a inocência dos que se perderam no meio do caminho, que estamos em nós mesmos quando estamos na arte e esse é o encontro único que nos devolve à nós mesmos na forma de um corpo in-quieto, in-corporado, o corpo da in-corporatura.

Texto para a exposição que está na Galeria Monica Filgueiras em São Paulo

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