Identidade

Identidade

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2021 é “memória”


Tudo tem um nome. Tudo pode ser chamado. Mas não chamado de qualquer jeito… tem que ter uma história. Porque não se trata nada e nem ninguém de forma desrespeitosa. Ao menos deveria ser assim. Eu, por exemplo, até pouco tempo atrás era chamado por um nome que não era meu. Que não era eu. Quando eu pensava ‘epistemologicamente’ me deparava com um precipício: como quando se para à beira da estrada e se fica a contemplar a paisagem, sem saber ao certo para onde olhar… e o horizonte não tem nome, cada nuvem dissipa e modifica as histórias. E o céu é grande demais, infinito demais. Não se consegue acalmar a

alma frente à imensidão, muito menos nomeá-la. E este foi o precipício que veio agregado à minha certidão: ganhei um nome, simplesmente, para livrar alguém de uma enrascada. Baita enrascada, diga-se de passagem… Escreveram no meu registro um código gráfico que nada tinha a ver com meu DNA. E carreguei esta estranheza boa parte da vida. Talvez por isso que tantas vezes não respondia quando na

escola me chamavam por aquele nome. Talvez por isso também que tantas vezes não ouvi a vida me chamar. Oportunidades que fui deixando pra lá, que me chamavam e eu não escutava. Diziam aquele nome que, de certa forma, era e não era eu. Era meu nome sim, mas evocava outras coisas, outras cargas, outra pele… Eu tinha que carregar o diminutivo de alguém que, visceralmente sabia, não tinha nenhuma ligação comigo. Objeto estranho. Visitei ontem um amigo que colocara um pino de cobre no braço, fazendo as vezes de osso para dar sustentação aos seus movimentos. Quebrara o braço jogando bola, numa dessas peladas de final de semana. Na visita me contara que o convênio não queria cobrir o tal pino, dizendo que havia sido fatalidade. -Ora, fatalidade, e o que tenho eu a pagar com as artimanhas do destino, então? – perguntava meu amigo. Não era ele que deveria acertar as contas. Ao menos não desse jeito, custeando um pino. Eis que o convênio, após muita briga, pagou o que era devido. E agora era o próprio organismo que não aceitara a oferta: o braço

rejeitara o adereço ortopédico. “- Corpo estranho” – explicou-me ele – “Meu braço reconheceu que não era seu osso! Fez um calombo desse tamanho, parecia que o braço queria cuspir o pino”. Entendia o pino, porque eu também sempre reconheci que algo estranho existia em mim. E bem que queria, ainda novo, ter podido resolver essa história: simples como uma cuspida. Mas a gênese de uma pessoa transcende o código de lei vigente. Ele não dá conta de armar um júri para sentenciar a vida de ninguém! E assim vivi, sem nenhuma sindicância para apurar minha dor. Dor que só aumentava com meu maior entendimento das coisas, a cada apagar de velas, a cada tropeço nas dificuldades que a vida me impunha.

Quando cheguei perto de ti, postumamente, abaixei a cabeça e só enxerguei a falta do teu nome na minha vida até então. Não te enxerguei na página do livro e nem nas páginas das minhas vivências. Faltaste. Pouco te vi nos meus dias. Aparecia mais nas ausências que ao meu lado, fisicamente. Eu sabia de ti, te sentia

correndo dentro de mim, mas não me chamavam com nenhum parentesco a ti e tu te ausentavas disso também. Olhava-me, às vezes, e aposto que te reconhecias em mim… e podia ler algo no teu olhar – que era estranho e familiar. Mas seguias sem dar-me teu nome ou dizer-me que éramos, sim, do mesmo tronco. Entendo que a guerra que participastes, de fato, não foi teu único grande conflito. Com o fim da segunda grande revolução mundial, abandonaste as armas e talvez por isso não soubesse mais lutar pelo que era justo: e muito menos lutar por mim. Faltaste! Afinal, a pátria tem um bom tanto de paternidade, de defesa, de pertencimento. Lutaste tanto por tua pátria mãe que esgotaram-te as forças de lutares pelo que de ti descendeu. Sinto tua falta hoje em dia, de tudo que deixamos de viver. Tua arma – minha herança concreta agora – tomara me ensine a lutar pelos meus… Nunca fui a uma guerra, mas me pego cansado de lutas… Enfrentei a maior das batalhas: que é a de viver a vida lutando para ter a mim mesmo.

Por isso que ao ganhar a autorização para me apropriar da parte escrita do meu sangue eu liguei para ela. Sabia que ela, mais do que ninguém, entenderia o pulsar do meu coração e vibraria comigo. Poucos entendem a diferença que isso faz na vida de alguém… Não era apenas um nome, um papel, um registro; não se tratava de um simples neologismo. Sentia-me um neófito, na pia batismal, chamado por um novo nome: este sim meu. Ela foi a primeira pessoa a pronunciar meu nome. Chorei, porque desta vez era eu.

 

Flávia Bernardi,  47, é psicanalista
em Caxias do Sul. Amante da literatura,
gosta de se ocupar da escrita para dar
conta da vida: as metáforas sempre a encantaram!

 

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