Heróis subestimados

Heróis subestimados
Graciliano com as netas Sandra (à esquerda) e Vânia (à direita), Rio de Janeiro, 1949 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F13-001)

 

Em 1962, nove anos após a morte de seu autor, surgiu a primeira edição de Alexandre e outros heróis, de Graciliano Ramos. Tratado como “obra póstuma” à época, o livro reúne três textos direcionados ao público infantil, dois dos quais já haviam sido publicados anteriormente. Histórias de Alexandre, que abre a coletânea, foi concluído em 1940 e publicado quatro anos depois; A terra dos meninos pelados, de 1937, saiu em livro no ano de 1939, e Pequena história da República, escrito em 1940, foi o único publicado postumamente, em 1960.

Tais escritos receberam pouca atenção por parte da crítica, dificultando seu conhecimento pelo público leitor. Entretanto, Alexandre e outros heróis desmente a opinião de estudiosos da literatura que o consideraram um livro menor, momento de impasse ou recreio dentro da obra do escritor. Pelo grau de inventividade com que Graciliano aborda diferentes gêneros, como o folclore, o conto fantástico e o texto histórico, o livro merece vencer o preconceito que ainda acompanha a produção voltada para o público infantil e figurar entre aqueles que consagraram Graciliano como um dos maiores escritores da literatura brasileira do século 20.

Em A terra dos meninos pelados, Graciliano apresenta Raimundo, um menino que possui a cabeça calva, um olho preto e outro azul. Ridicularizado por seus colegas por ser diferente, Raimundo cria, no passeio de sua casa, o país de Tatipirun, habitado por animais e objetos fantásticos, onde não há violência, o ambiente é aconchegante e todas as crianças têm aparência semelhante à dele. Assim, o menino deixa uma realidade adversa e mergulha num espaço de aceitação, igualdade e respeito. Entretanto, essa fábula, que parece elogiar o uso da imaginação como forma de fugir às dolorosas condições do real, sofre uma decisiva mudança quando Raimundo prefere enfrentar seus problemas em vez de seguir vivendo em uma terra utópica, demonstrando a segura opção de seu autor pelo repúdio à literatura escapista praticada tanto pelos românticos quanto por inúmeros romancistas de sua geração. Especialmente a partir da experiência no cárcere, Graciliano pautava-se em uma literatura combativa, de denúncia da miséria e da desigualdade; portanto, nada mais inadequado para tais posições que a atitude do menino humilhado que decide se refugiar num país imaginário como forma de se ver livre das agruras e crueldades do mundo. O menino/escritor conhece esse país onde imperam a igualdade e o respeito, espaço onde nada tem a temer. Entretanto, convidado a permanecer ali, vem a recusa, em função das obrigações deixadas em sua Cambacará natal. Raimundo despe-se dos trajes do país de Tatipirun e dá adeus aos habitantes da terra dos meninos pelados, consciente de que retorna mais fortalecido para suas responsabilidades, sintetizadas nas “lições de geografia” que precisa estudar e, sobretudo, ensinar.

Em Histórias de Alexandre, temos a narrativa das façanhas de um sertanejo velho, pobre, com um olho torto, que desfia histórias para uma plateia fiel, contando com a cumplicidade de sua mulher, Cesária. Assim como Alexandre, protagonista invariável das histórias que narra, o público é formado por excluídos, invisíveis sociais: um curandeiro, um cantador, uma benzedeira e um cego. E é na tentativa de fugir a essa invisibilidade que Alexandre imagina suas histórias, repletas de animais falantes, objetos mágicos e toda sorte de acontecimentos fabulosos. As efabulações fantásticas sobre o seu passado de riqueza e glórias são desmentidas pela condição de pobreza em que vive. Dessa forma, a palavra de Alexandre tem o condão de construir para si um prestígio e um espaço social negados pela realidade. E se o exímio vaqueiro, o rico proprietário e o negociante habilidoso que protagonizam as narrativas fantasiosas sobre o passado de Alexandre não deixaram sinais no sertanejo pobre, Graciliano aproveita-se desse espaço para inserir uma dura crítica às condições de penúria do Nordeste brasileiro, às voltas com a decadência e a miséria promovidas pela seca e pelo descaso governamental. Misto de texto folclórico e conto maravilhoso, Histórias de Alexandre encanta pela potencialidade das discussões que vislumbra, fazendo uma espécie de síntese da obra adulta do escritor. Nesse jogo fascinante, em que imperam a ironia, o insólito e a crítica social, cabem ainda abordagens sobre o próprio fazer literário.

Pequena história da República, por sua vez, não traz uma narrativa em que a imaginação impera, nem muito menos mundos utópicos; ao contrário, em breves pinceladas, surge um retrato do período republicano em registro de crônica, marcado pela ironia, pelo sarcasmo e pela impressão memorialística, diferentemente de um discurso histórico sustentado pela documentação e pelo rigor metodológico. Se a história oficial já havia contado a história dos vencedores, Graciliano adota um ponto de vista distinto. Elabora um híbrido de enciclopédia da Primeira República com texto literário, mostrando uma visão multifacetada do período, direcionada às crianças. Graciliano repudia o moralismo, brinca com personagens históricas, como no verbete “Os homens”, no qual imagina o ditador Getúlio Vargas ainda criança, cavalgando cabos de vassoura. Em linguagem fácil – e não facilitadora – o livro não se nega a identificar “safadezas”, “bagunças” e “azedumes” entre os fatos narrados; rebaixa o registro historiográfico ao mesmo tempo em que confere ares de farsa trágica ao pretenso texto histórico. Políticos astutos são “raposas”; os chamados “Dezoito do Forte” são qualificados como “doidos”; as revoluções são apresentadas como “encrencas”; as batalhas tornam-se “confusões medonhas”; os sobreviventes de Canudos são “fanáticos inúteis”, e o próprio Antônio Conselheiro nasce “numa família de malucos”. A narrativa episódica, com trechos que muitas vezes não atingem dez linhas, desconstrói o texto histórico ao desfazer o sentido de continuidade que a disposição cronológica dos acontecimentos tenderia a construir, destruindo qualquer ilusão de cientificidade e pretensa objetividade discursiva.

Raimundo, com um olho azul e outro preto, e Alexandre, com seu olho torto, representam o olhar crítico, enviesado, que Graciliano Ramos utiliza para esgarçar a realidade. Pelos caminhos tortuosos da fantasia, surge em paradoxo um mundo real: repleto de injustiças, invisibilidade social, desmandos políticos, histórias oficiais inventadas. É com os olhos de Raimundo e Alexandre que Graciliano cria a Pequena história da República e subverte o esquema clássico do livro de História para crianças, pois sua abordagem subjetiva, marcada pelas experiências de encarceramento físico e intelectual, traduz a visão daqueles que sempre estiveram à margem da sociedade.

A literatura infantil de Graciliano Ramos não representa uma fuga de seu percurso estético-literário. Suas obras dirigidas às crianças dão continuidade às reflexões de um autor sempre incomodado com a desigualdade. Os personagens a quem o autor concede vida em seus textos literários, tanto em Vidas secas e S. Bernardo, como em Histórias de Alexandre ou A terra dos meninos pelados, são sujeitos castigados e humilhados, seja pelo mecanismo cruel da sociedade capitalista, seja pela modernização insensível, seja pelo preconceito que esmaga a diferença. Por isso, não se pode falar em dispersão ou irreflexão na trajetória artística de Graciliano, mas em uma tentativa lúcida e coerente de demonstrar para adultos, jovens e crianças que o mundo não é feito de uma única verdade, de uma História única. Sendo assim, Pequena história da República também se insere com perfeição nesse projeto, uma vez que traz um olhar renovador, leve, sobre os fatos sempre tratados de forma engessada, segundo a visão dos donos do poder.

O escritor aos 40 anos, em Maceió, 1942 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F01-048)

Em Alexandre e outros heróis, Graciliano demonstra como é possível produzir uma literatura infantil sem infantilizar ou facilitar a linguagem, incluindo a criança no processo de construção de sentido. Para isso, utiliza-se do fantástico e do humor como formas de buscar uma identificação entre o leitor mirim e o imaginativo Alexandre, o sofrido menino Raimundo ou o narrador debochado de episódios da história do Brasil.

Quando a crítica literária coloca à margem uma parcela significativa da literatura de Graciliano Ramos, considerando-a menor, justamente por ser voltada às crianças, perde de vista a riqueza e a diversidade desse conjunto criativo. Dialogando continuamente com os excluídos, o escritor mantém sua coerência ao eleger o público infantil como foco desses importantes e subestimados textos. Mas que não se imagine que Alexandre e outros heróis limita seus atrativos ao gosto infantil. Nascido sob a ditadura do Estado Novo, o livro aborda com sutileza alguns temas essenciais para a compreensão do Brasil do seu tempo, sujeito aos rigores da censura, aos debates intelectuais em torno da realidade brasileira e às profundas transformações que agitavam o país. Assim, ao mesmo tempo que presta importante homenagem à inteligência das crianças, encanta também os adultos sensíveis, capazes de enxergar nas histórias bordadas de fantasia e em sua sarcástica apreciação da história política brasileira um refinado espaço literário de denúncia e crítica social.


Liliân Alves Borges 
é doutoranda em Estudos Literários na UFU

Edmar Monteiro Filho 
é doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp


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