Golden shower: uma lição de moral

Golden shower: uma lição de moral
(Arte Andreia Freire/ Revista CULT)

 

Com Rubens Casara

Em um mundo pelo avesso, no qual as virtudes são vistas como vícios e os vícios se apresentam como virtudes, nesse mundo construído a partir da crença de que tudo pode ser objeto de negociação, a moral também se transformou em uma mercadoria. O que era considerado próprio para uma vida em comum em um ambiente democrático se torna sem valor, enquanto o impróprio é usado e vendido no mercado sob a casca da moralidade.

Essa moral do mundo pelo avesso vem sendo usada pelos mais diversos atores e grupos com um objetivo específico que é alcançar o poder. Ao menos, o que esses indivíduos e grupos chamam de moral é utilizada com objetivos que, se fossem conhecidos pela população, poderiam ser chamados de imorais. Nesse sentido, devemos entender a diferença entre a moral que faz parte da vida humana em comunidades ou sociedades e o uso da moral; a utilização que se dá a esse significante cada vez mais vazio. Quando está em jogo o seu uso já não se trata de moral simplesmente e podemos então falar do recurso ao moralismo.

Há pelo menos dois tipos de moralismo. De um lado, o que poderíamos chamar de “verdadeiro”, do indivíduo que pratica o que diz e pretende impor aos outros o que acredita e faz, e, de outro, o falso, daquele que não pratica o que diz e impõe aos outros o que ele mesmo se recusa a fazer. Em qualquer dos casos, o moralismo manipula a moral e combate um valor fundamental, que muitas teorias éticas vieram a confirmar: a autonomia do sujeito. Em termos simples, o moralismo coloca em risco a liberdade autêntica que inscreve uma pessoa como cidadão responsável na vida social e na relação com os demais a partir de uma perspectiva em que estão em jogo os direitos fundamentais de todos.

Para poder seguir, devemos nos colocar a distinção entre moral e ética. Enquanto a moral é aquilo que se submete a um valor em um determinado contexto, ou seja,  o conjunto dos hábitos, costumes e valores concretos de pessoas e grupos, a ética seria o questionamento da moral. Nesse texto propomos um questionamento de teor ético, por seu caráter reflexivo. O objetivo de um questionamento ético deve ser o esclarecimento e a abertura das perspectivas com o objetivo da autonomia do sujeito ético, aquele que se torna responsável por suas escolhas.

Há tempos, a moral, cada vez mais despida de valores democráticos, vem sendo usada por quem quer chegar ao poder e manter-se nele. No Brasil, por exemplo, a questão da corrupção foi manipulada tendo sempre em vista uma perspectiva moral, mas comprometida com os interesses dos detentores do poder econômico. De um ponto de vista moral, é um dever ser contra qualquer forma de corrupção. No entanto, aqueles que, sendo corruptos fazem discursos contra a corrupção, só podem fazê-lo com base em uma perspectiva moralista, justamente aquela que é usada pelos que não tem valores morais, mas sabem que a palavra “moral” tem valor em qualquer parte do mundo. O moralismo, nesse caso, serve como cortina de fumaça para desviar a atenção da verdade que está intimamente relacionada ao valor mais profundo da ética, que é o bem de todos e de cada um, o que só se consegue pela garantia dos direitos de todos e de cada um.

Em geral, todos os moralistas escondem alguma coisa que a maioria das pessoas consideraria imoral. O presidente da República e seus assemelhados são todos usuários de uma fala moralista com objetivos de manipulação. Os discursos toscos, sejam os do presidente, sejam dos deputados corruptos que falam contra a própria corrupção, parecem simples. A simplicidade, aliás, é condição para o sucesso da mensagem que pretendem passar para pessoas cada vez mais incapazes de refletir sobre o que que é dito. Mas eles escondem também a complexidade do seu jogo de poder.

O presidente reproduz uma fórmula de sucesso nos Estados Unidos a partir da Era Trump e assim, mesmo sem saber, joga com uma lógica de banda de Moebius que deixa a todos confusos. Banda de Moebius é uma forma da geometria descritiva em que um lado de uma superfície se torna a outra sem deixar de ser ela mesma. A banda de Moebius é uma figura da dialética, das teorias da auto-referencialidade que implicam complexas estruturas de linguagem, mas usada para o mal serve também para gerar confusão mental. Lembremos dos desenhos de Escher, da matemática de Gödel.

Enquanto confundem e geram reações de ódio e amor no campo moral, Trump e Bolsonaro colocam em prática o projeto neoliberal de acabar com os limites democráticos e éticos ao exercício do poder e, assim, atender aos objetivos do mercado, sobretudo do mercado financeiro que sempre souberam lucrar com o caos, a destruição e a desorientação do povo.

Um dos exemplos mais interessantes está no ato que se pretendeu moral de expor uma cena do que era antes desconhecido para a maior parte da população e agora se tornou famoso: o “golden shower”. Fato é que o gesto do presidente na sua exposição era manifestar-se em defesa da moral de um modo extremamente moralista. No entanto, esse ato a estilo de uma “lição de moral”, de uma denúncia, escondia a manipulação da moral, o que se tornou evidente por meio da óbvia imoralidade da cena que não seria conhecida e acessível pelas multidões, inclusive crianças, se o presidente Bolsonaro não tivesse atuado na condição de um mensageiro da pornografia que ele afirmava querer denunciar.

Esse exemplo torna claro que a moral pregada pelo governo é, na verdade, uma imoralidade; que a tática de jogar com a moral é imoral. O jogo do poder, nesse momento, é mais profundo e mais pérfido. Expor a forma imoral com que a moral é tratada, retirar a moral da boca dos moralistas, é o desafio.

Leia a coluna de Marcia Tiburi toda quarta no site da CULT

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