Gênios no paraíso

Gênios no paraíso

Norman Lebrecht

Numa manhã de setembro de 1940, um músico recém-chegado da Europa fez uma visita ao maestro Otto Klemperer, em Los Angeles, e o encontrou discutindo Gustav Mahler com seu companheiro de exílio Bruno Walter. O visitante foi almoçar na nova residência de Thomas Mann, em Pacific Palisades, onde trabalhou algumas peças de música de câmara com Michael, filho de Mann e violista. À noite, visitou, em Hollywood, Igor Stravinsky, que estava ensaiando seu concerto para violino.
Por um único breve momento, uma piscar de olhos na história da cultura, a Cidade dos Anjos abrigou o futuro da música erudita. Klemperer, um pioneiro da ópera modernista em Berlim, trabalhava como diretor musical da Filarmônica de Los Angeles, expandindo os horizontes com ousadas comissões a compositores vivos. Stravinsky, um quarto de século depois de sua escandalosa notoriedade com “A sagração da primavera”, estava no auge de sua fase neoclássica. Seguindo pela Sunset Boulevard, na North Rockingham Avenue, vivia Arnold Schönberg, o homem que tinha permitido à música escapar da camisa de força tonal. Assim, dois dos três revolucionários musicais do século acabaram se refugiando na mesma cidade. O terceiro, Béla Bartók, vivia em Nova York.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Los Angeles estava na vanguarda da criação musical. Como as fronteiras de uma arte elitista e seletiva se deslocaram para um lugar dominado pelo sol, pelo surfe e pelo cinema superficial é o tema de A windfall of musicians [“Músicos que caíram do céu”, inédito no Brasil], um cativante estudo de Dorothy Lamb Crawford baseado em arquivos documentais e entrevistas com remanescentes da época.
Esse influxo foi provocado por Adolf Hitler, cuja ascensão ao poder, em 30 de janeiro de 1933, fez com que a arte moderna e os músicos judeus fossem banidos da vida pública alemã. Hollywood ofereceu a autores exilados uma oportunidade de trabalho, atraindo os irmãos Thomas e Heinrich Mann, Bertolt Brecht, Vicki Baum, o romancista que escreveu o best-seller Grand Hotel, e Erich Maria Remarque, autor do clássico da Primeira Guerra Nada de novo no front (LP&M Editores).
Já os músicos abrigaram-se primeiro na Costa Leste, onde havia orquestras sinfônicas veneráveis e universidades de prestígio. Porém, decepcionados com o profundo conservadorismo ali encontrado, migraram em seguida para o oeste. Los Angeles, mesmo com toda a badalação da vida ao ar livre, não era nenhum paraíso. Schönberg podia até ser parceiro de tênis de Charles Chaplin e George Gershwin, mas tinha de aturar alunos “superficiais e autômatos” que se preocupavam mais com os créditos que tinham de cumprir na faculdade do que com o desafio representado pela arte. Consternado com a ubiquidade do comercialismo, ele diria ao artista Oskar Kokoschka que estava vivendo num “mundo em que quase morro de desgosto”. Lotte Lehmann, uma serena cantora de lieder, escreveu um romance chamado Of heaven, hell and Hollywood [“Sobre o céu, o inferno e Hollywood”], deixando clara sua opinião sobre o reino infernal que habitava.

Entre o céu e o inferno

Stravinsky, que bebia pesadamente, integrou-se à colônia dos escritores, fazendo amizade com os ingleses Christopher Isherwood e W.H. Auden. Outros compositores escreviam música de baixa qualidade para “filmes B”. Hanns Eisler, um compositor radical de canções, desenvolveu uma teoria sobre a integração entre colorido musical e emoção cinematográfica. Friedrich Hollaender, um dos compositores de cabaré mais espirituosos de Berlim, continuou escrevendo canções satíricas até que sua esposa foi pega tentando roubar comida. Depois disso, ele desandou a compor 175 trilhas sonoras. Billy Wilder, ele mesmo um exilado do nazismo, foi o único diretor a permitir que Hollaender escrevesse uma canção cinematográfica original.
Poucos chamaram aquilo de paraíso. Até Erich Wolfgang Korngold, o paradigma do compositor de cinema milionário, era constantemente diminuído por seu pai vienense por não conseguir que suas peças fossem tocadas nas salas de concerto. Schönberg livrou-se com magnífica perversidade satírica de um encontro lucrativo com o magnata do cinema Irving Thalberg e adorou quando Jascha Heifetz declarou que seu concerto para violino era impossível de tocar. “Talvez tenha precisado trabalhar quatro vezes mais para sobreviver”, disse Schönberg, “mas não fiz nenhuma concessão ao mercado”.
Apesar de todas as incongruências, os modernistas de Los Angeles deixaram a sua marca. O aluno John Cage, ridicularizado por Schönberg em sala da aula, adorava seu professor “como um deus” e viria a desenvolver iconoclasmos musicais de caráter tipicamente norte-americano. A Filarmônica de Los Angeles passou a tocar o ano todo e tornou-se uma das melhores dos EUA. A música cinematográfica ganhou várias camadas de sutileza e inúmeros jovens músicos alcançaram grandes feitos graças ao contato com os gênios estrangeiros. Resmungando, Stravinsky ainda viveu ali por 20 anos depois do fim da guerra, como última relíquia de uma efêmera era dourada.
Crawford, a autora do livro, passou boa parte de sua vida ativa ensinando e fazendo música no sul da Califórnia e descreve o encontro com o novo continente com uma familiaridade física a sua narrativa e um olho atento aos detalhes surpreendentes, ao choque com a novidade. Ela cita a primeira impressão de Vicki Baum: “Estive embriagada por semanas com esse sol, com esse ar e com a beleza das colinas”. Crawford exagera a importância de figuras menores como Ernst Toch e talvez subestime Kurt Weill, cujas incursões em Hollywood exigem pesquisa mais aprofundada. Não obstante, A windfall of musicians é uma obra valiosa por investigar como o oeste tornou-se uma força cultural nos EUA, um ascendente contrapeso à tradição engessada do leste.
O que, aliás, durou só até certo ponto. Em 1997, os encarregados da Universidade do Sul da Califórnia decidiram esvaziar o prédio do Instituto Arnold Schönberg e mudar seu nome para o de um recente doador. Viena resgatou os arquivos do compositor, suas partituras, suas cartas e suas pinturas, acomodando-as num Centro Arnold Schönberg, construído a propósito. Com esse enorme desrespeito à história, Los Angeles foi expurgada de seu acidente, ou melhor, sua aberração modernista.

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