O que temem os fundamentalistas

O que temem os fundamentalistas
Bandeira símbolo do movimento LGBT criada pelo artista Gilbert Baker (Divulgação)

 

Informações sobre as múltiplas violências contra pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgênero), publicadas pela grande imprensa ou não, são diárias para quem milita em prol do respeito à diversidade sexual e de gênero no Brasil. E as pessoas militantes, entre as quais me incluo, têm dados suficientes para comprovar uma sensação generalizada: as violências contra essa população, que historicamente nunca foram poucas, têm aumentado nos últimos anos. Além dos atentados contra a vida, uma série de outras violências, algumas delas mais sutis e difíceis de perceber, mas nem por isso de menor poder ofensivo, proliferam rapidamente em vários espaços.

Ao mesmo tempo, assistimos ao recrudescimento do conservadorismo e à proliferação dos discursos de ódio, veiculados inclusive em várias emissoras de rádio e televisão, que são concessões públicas (frisa-se), contra qualquer pessoa que não seja heterossexual, branca, monogâmica, cristã, “saudável”, produtiva e cisgênera (aquela que possui uma identidade de gênero tida como compatível e plenamente correta em relação à sua presumível genitália). E esses discursos de ódio se transformam em ações concretas de governos e também em projetos de lei que pretendem, por exemplo, proibir discussões sobre sexualidade e gênero nas escolas, definir que família só pode ser formada por um homem e uma mulher “de verdade”, seja lá o que isso for.

Qualquer pessoa minimamente progressista se depara com esse rápido e incompleto diagnóstico e pergunta: mas o que está acontecendo no Brasil? Estamos voltando à Idade Média? Não parecia que estávamos andando exatamente na contramão dessa onda conservadora? E o que tem sido feito para reverter esse quadro? Eis algumas perguntas que gostaria de enfrentar a partir de agora.

Em relação à primeira pergunta, começo com um paradoxo. O Brasil, ao mesmo tempo em que possui uma boa parcela da população que vive ou parece viver a sua sexualidade de forma mais liberada em relação a outros países, nunca foi um paraíso para as pessoas LGBT. Temos um histórico, relativamente já bem documentado, de suplícios e perseguições, ao mesmo tempo em que temos, igualmente estudadas e até festejadas, características que apontam para as diversas formas como os brasileiros e as brasileiras experimentam as suas sexualidades e os seus gêneros.

Mas, ao que parece, o maior problema não está em experimentar as diversas sexualidades e os gêneros. Os grandes problemas começam a surgir quando essas experiências se tornam mais visíveis, quando elas saem dos quartos, dos guetos, dos armários, e as pessoas passam a exigir direitos e, principalmente, quando começam a questionar e a desconstruir os padrões de naturalidade e normalidade tão caros para a manutenção da heterossexualidade compulsória e para a heteronorma. Evidenciar como diversos padrões foram e continuam sendo construídos e sedimentados na base de muita violência é vital para respeitarmos quem cria e recria suas vidas por meio de perspectivas diferentes.

E, nesse sentido, identifico o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em maio de 2011, como um marco também paradoxal: ao mesmo tempo em que concedeu um direito legítimo para determinadas pessoas, despertou a ira dos conservadores, notadamente dos religiosos fundamentalistas, que passaram, a partir daí, a se articular de forma mais intensa para impedir qualquer avanço nos direitos das pessoas LGBT.

Reitero: os fundamentalistas nunca deixaram de nos perseguir, vide os processos da Inquisição, mas voltaram a nos eleger como inimigos número 1. Basta lembrar, por exemplo que, em determinado momento, os fundamentalistas evangélicos elegeram os católicos como inimigos. Como chutar a santa católica não pegou bem, resolveram se unir com os fundamentalistas católicos (muito bem representados em vários bispos que agora escrevem absurdos sobre uma tal “ideologia de gênero” que nós teríamos). Ou seja, decidiram chutar um alvo mais fácil e, se for para quebrar uma imagem, que seja a de qualquer representação de alguma divindade das religiões de matriz afro-brasileira.

E essa articulação fundamentalista não é apenas nacional, mas também internacional, como atesta a publicação do livro A estratégia – O plano dos homossexuais para transformar a sociedade, de autoria do reverendo norte-americano Louis P. Sheldon, traduzido e editado no Brasil por uma editora ligada a Silas Malafaia (Central Gospel) logo depois da histórica decisão do STF. Esse livro é a verdadeira bíblia dos fundamentalistas, repleto de inverdades, estratégias para combater os direitos das pessoas LGBT e discursos de ódio, razões pelas quais, em 2012, o movimento LGBT tentou proibir a sua venda no Brasil, via ação na Justiça. Nada aconteceu e o livro continua à venda.

Mas não parecia que estávamos andando exatamente na contramão dessa onda conservadora? Outra resposta que não pode ser reduzida a um sim ou a um não. Novamente, mais um paradoxo. Ao mesmo tempo em que as pessoas LGBT passaram a ter mais visibilidade nas ruas e nas telas e conquistaram algumas migalhas em termos de direitos e políticas públicas (essas últimas em nível federal já debilitadas no governo Dilma e completamente extintas pelo governo golpista de Temer), a chamada onda conservadora nunca deixou de exercer o seu poder, notadamente nas esferas das sexualidades e dos gêneros, inclusive com fortes ressonâncias dentro do próprio movimento e população LGBT e também em vários grupos e pessoas heterossexuais pretensamente mais progressistas, inclusive políticos de um espectro à esquerda.

A sensação de maior liberdade e respeito não passa de uma ilusão capaz de ser desmascarada na menor transgressão promovida por experiências mais dissidentes em relação às sexualidades e os gêneros. Gays masculinizados, tidos como bem vestidos, cheirosos, musculosos, metropolitanos, classe média alta e que querem casar e ter filhos, até podem ter desfrutado de uma igualmente ilusória sensação de inclusão social momentânea. Agora recebem lâmpadas na cara em plena Avenida Paulista.

E o que tem sido feito para reverter esse quadro? Minha impressão é de que, no plano institucional, governamental ou não governamental, muito pouco ou quase nada. O governo federal golpista jamais entenderá que as pessoas LGBT necessitam de alguma coisa. Até a política de prevenção e combate ao HIV e à aids foi desmantelada, mesmo que até as pedras do Pelourinho saibam que o vírus não escolhe orientação sexual das pessoas. Governos estaduais ou municipais (talvez uma exceção esteja na cidade de São Paulo) tidos como mais progressistas sofrem ou com a oposição dos fundamentalistas ou os próprios fundamentalistas formam a base de sustentação desses governos nas assembleias legislativas (como é o caso da Bahia) e câmaras municipais. Ou seja, se repete o que ocorria no Congresso Nacional durante boa parte dos governos Lula e Dilma.

No plano do movimento social LGBT mais institucionalizado, existem honrosas tentativas de reversão do quadro, mas, no geral, temos um movimento que, assim como os demais, sofre com o esvaziamento, o cansaço e a descrença de muitas pessoas, frutos de uma série de razões que incluem a excessiva partidarização de nossas bandeiras. Essa partidarização gerou bons frutos, mas também gerou dependência do Estado, brigas imensas por ocupação de poucos cargos e uma certa leniência com o quadro que se desenhava, pelo menos desde 2012, em nome de uma tal governabilidade ou do projeto maior do partido, que igualmente naufraga em denúncias, processos, prisões e caixa dois.

Então está tudo perdido? Não, felizmente. A resistência existe, está crescendo e tem se revelado muito potente. Mas ela não está onde a maioria pensa que deveria estar. A resistência à onda conservadora está em um novo ou novíssimo movimento, que não é e nem quer ser, ao menos por enquanto, institucionalizado. Está numa multidão de diferentes que encontramos em escolas, universidades, ruas, locais ocupados, redes sociais, teatros, bares, prédios públicos diversos, algumas igrejas e terreiros, produzindo potentes contradiscursos.

E essa multidão não para de crescer, especialmente quando suas práticas políticas encontram as práticas artísticas e culturais. É o que algumas pessoas estão nomeando, ainda que precariamente, de artivismo que, no tocante ao tema deste texto, poderia ser chamado de artivismo das dissidências sexuais e de gênero. Uso a expressão “dissidências” em contraposição à ideia de “diversidade sexual e de gênero”, já bastante normalizada, excessivamente descritiva e muito próximo do discurso da tolerância, ligada a uma perspectiva multicultural festiva e neoliberal que não explica como funcionam e se produzem as hierarquias existentes na tal “diversidade”.

A emergência desses artistas e coletivos artivistas pode ser explicada por várias razões. Eis algumas: o espantoso crescimento dos estudos de gênero e sexualidade no Brasil, em especial os situados nas dissidências sexuais e de gênero, a ampliação do acesso às novas tecnologias e a massificação das redes sociais, a expansão da temática LGBT na mídia em geral, em especial em telenovelas, filmes e programas de televisão, a emergência de diversas identidades trans e pessoas que se identificam como não binárias em nosso país, além da valorização da fechação, da não adequação às normas (corporais e comportamentais) de meninos afeminados, mulheres lésbicas masculinizadas e outras várias expressões identitárias flexíveis que provocaram a abertura do fluxo antes mais rigidamente identitário. Mas talvez a mais importante das razões esteja exatamente na própria necessidade, consciente ou não, de reagir frente ao quadro terrível no qual estamos inseridos.

Essas pessoas artivistas trabalham de formas diferenciadas, mas alguns aspectos as unem: 1) priorizam as estratégias políticas por meio de produtos culturais, pois entendem que os preconceitos nascem na cultura e que a estratégia da sensibilização via manifestações culturais é mais eficaz para produzir outros processos de subjetivação; 2) criticam a aposta exclusiva nas propostas dos marcos legais, em especial quando essas estratégias e marcos reforçam normas ou instituições consideradas disciplinadoras das sexualidades e dos gêneros; 3) explicam as sexualidades e os gêneros para além dos binarismos, com duras críticas às perspectivas biologizantes, genéticas e naturalizantes; 4) entendem que as identidades são fluidas e que novas identidades são e podem ser criadas, recriadas e subvertidas permanentemente; 5) rejeitam a ideia de que, para ser respeitado ou ter direitos, as pessoas devam abdicar de suas singularidades em nome de uma “imagem respeitável” perante a sociedade; 6) parecem mais conscientes da necessidade de interseccionar as suas lutas com vários outros marcadores sociais das diferenças, a exemplo de questões étnicas, de classes, gerações, níveis de escolaridade, capacidades corporais etc.

Alguns exemplos? Temos centenas, pois essas experiências procriam rizomaticamente em vários cantos, mas não vou me negar de citar apenas alguns. Na música, aparentemente, temos nomes que rapidamente se tornaram bem conhecidos nacionalmente, como Johnny Hooker, Liniker, Jaloo, Caio Prado, Rico Dalasam, MC Xuxu, As Bahias e a Cozinha Mineira. Na cena teatral temos o Teatro Kunyn (São Paulo), As Travestidas (Fortaleza), ATeliê voadOR e Teatro da Queda (Salvador). Fora isso, uma profusão de coletivos diversos, com ênfase em performances, como O que você queer? (Belo Horizonte), Cena Queer (Salvador), Anarcofunk (Rio de Janeiro), Revolta da Lâmpada (São Paulo), Selvática Ações Artísticas (Curitiba), Cabaret Drag King (Salvador), Coletivo Coiote (nômade), Seus Putos (Rio de Janeiro). A lista poderia ser longa, para o horror dos conservadores.

Como sabemos, a produção artística brasileira que problematiza as normas sexuais e de gênero não é absolutamente nova. Estudos desenvolvidos no interior do próprio grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), trataram, por exemplo, do papel do grupo Dzi Croquettes ou do cinema de Jomard Muniz de Britto. Outros vários exemplos poderiam ser citados, como é o caso do Teatro Oficina (São Paulo). No entanto, o que temos percebido com mais intensidade nos últimos anos é a emergência de outros coletivos e artistas que trabalham dentro de uma perspectiva das dissidências sexuais e de gênero e que, ao mesmo tempo, explicitam suas intenções políticas, ou melhor, que criam e entendem as suas manifestações artísticas como formas distintas de fazer política, em especial quando contrapostas às formas mais “tradicionais” usadas pelo movimento LGBT mainstream.

Ao analisar o trabalho de algumas artivistas, a pesquisadora Patrícia Lessa apontou para algumas características dessas produções. Uso intenso das novas tecnologias e redes sociais, produções não voltadas para espaços fechados ou museus, mas para as ruas, festas e outros espaços públicos de sociabilidade facilmente acessados, horizontalidade das produções e, fundamentalmente, “as artivistas, por meio dessas práticas, questionam o corpo, o sexo e o modelo dessexualizado do contrato de casamento, propondo novas formas mais criativas de estar no mundo e de sentir a multiplicidade e o valor da liberdade para a vida.”

É isso o que temem os conservadores, sejam eles fundamentalistas religiosos ou não. É isso o que teme o Papa Francisco, ao dizer: “Hoje, as escolas ensinam para as crianças – para as crianças! – que qualquer um pode escolher seu gênero”. Os conservadores podem até manter os diferentes na marginalização, mas não impedirão que uma multidão, cotidianamente, se levante contra as normas. Resistiremos, sempre!


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