Fragmentos para dias nada felizes

Fragmentos para dias nada felizes
A “brasilidade” que eu conheço é a de uma árvore que desapareceu, que pegou fogo, que virou cinzeiro, que virou cinzas (Foto: Taifur Azam/Divulgação)

 

Às vezes a gente quer que nasça um texto. E nasce outro. Isso é um sortilégio que a gente tem que aceitar.

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Quem escreve começa a escrever o que os outros querem ler, quando querem ler. Isso acontece, sobretudo se você é jornalista. Pra minha sorte, não é o meu caso, nesse momento em que se disputam corações e mentes de gente mal informada, abusada midiaticamente, que não entende de nada, nem de ler um texto, o tal analfabeto funcional que se exibe nas redes sem vergonha porque não faz ideia do próprio papelão.

Eu não disputaria ninguém, porque amo e apoio os espíritos livres. E é com eles que eu quero ir.

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Tem uma coisa nesse ato de escrever que é a crueldade das relações que se instauram entre escritores e leitores. Antigamente, se dizia que de médico e de louco, todo mundo… Na era das redes sociais se tem que dizer que de médico, louco e de escritor todo mundo… Escreve-se muito. Até aí, que bom. Não sei se há leitura correspondente para embasar a tantos que se entregam ao ato crucial da escrita no Twitter e no Facebook. On Bullshit, como diria H. Frankfurt.

Em nome dela, exige-se que cada um escreva aquilo que se deve ser escrito para saciar os espaços adequados, não a inteligência. Nunca ela. Nunca o chamado “textão”. Não há tempo para textão. Todo mundo tem pressa. Inteligência não vem ao caso. Que papo é esse?

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O mundo do excesso de informação e também de desinformação é um mundo naturalmente desinteressante. A chamada “lacração” faz parte da ordem do discurso em que só o que choca ou produz algum tipo de excitação tem direito de atenção. É duro ser interessante diante de espíritos dormentes e beócios, e os donos dos meios de produção do discurso jogam sujo com as mentes vazias e delirantes. As mentes calmas, os espíritos sutis não tem lugar na guerra antipoética das redes. Ainda bem que há o slam, o hip-hop, que há a poesia. E ainda há poesia.

Penso agora, que luxo é poder ser desinteressante quando a ordem social e política, ética e estética do mundo anda tão agressiva, tão alucinada. Que bom poder ficar quieto e aproveitar o convívio consigo mesmo, deve pensar alguém com a sabedoria de quem já viu de tudo nessa vida e, nela, alcança a façanha de continuar vivo pensando que ainda vai achar algo realmente interessante para ver ou fazer.

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Nem todo mundo quer o olhar de todo mundo. Às vezes o que se deseja é só um olhar perdido de alguém que se encontra consigo mesmo ao ler o que a gente escreveu.

Isso valeu todo o esforço e o tempo perdido de escrever. Penso agora naqueles que acham que não vale mais a pena escrever. Que agora o que restou já era, só porque o Brasil elegeu a ditadura de um asno no laranjal pra governar.  Que imagem horrível, dirá a sociedade protetora dos asnos (que falta de respeito, filósofa!)

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Estava aqui tentando me entender com meu pessimismo. Você, tem sido pessimista? Pois é. Estava aqui numa conversa com a minha própria alma,  um diálogo no sentido platônico e original do termo, e era bastante triste esse meu diálogo porque o assunto era o Brasil. E ele hoje nos dói mais do que nunca, porque a essa altura da história do Brasil, a gente – não interessa a cor, a religião, o sexo ou a ideologia – achava que já se podia ter esperança e ver os seus resultados concretos. E é só morte, lama, corrupção e miséria, e cancelamento de direitos, e políticos bizarros e ridículos destilando má fé diante de gente sem noção que – cegos de ideologias que não dizem o seu nome – não sabia o que fazia.

No fundo, aceitam o convite para serem fascistas porque está na moda. Não sabem o que fazem, e não entendem nada de Jesus…

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Hoje estava ouvindo aqueles meninos todos de Pernambuco cantando com o Alceu Valença, um mais bonito que o outro, e pensando, que rico esse Brasil, que coisa mais maravilhosa tantas pessoas que surgem nesse lugar.

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Ontem à noite, eu buscava mapas da Ilha Brasil, aquela ilha mítica de que se falava no imaginário medieval. A etimologia da palavra Brasil, de fato, remonta à etimologia da árvore do Pau-Brasil. É uma longa história que remonta ao metal que dá nome à cor da madeira.  A história é longa, mas é a história de nossa vermelhidão, de uma memória da “brasa”. Não o vermelho das esquerdas ou do comunismo vomitado pela boca dos otários de plantão a odiar os idealistas da comunhão sempre insurrectos contra o capitalismo da avareza. Mas o vermelho de brasas, de algo que vira carvão e um dia vira pó. Pó: aquele lugar ao qual retornaremos.

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Perdoem o memento mori, mas falei que esse texto não era sobre felicidades. Talvez ele se torne, mas ainda temos que passar por algumas instâncias alquímicas. Lembrei de um texto que escrevi há anos chamado Brasil Cinza. Escrevi porque a primeira vez em que vi o Pau-Brasil foi na forma de um cinzeiro na casa de uma gente burguesa e só muitos anos depois é que achei uma árvore viva daquilo que para muita gente ainda é pura matéria prima, natureza rebaixada a “commodities”. Era uma vontade de escrever uma espécie de “filosofia brasileira”, mas que tocasse nas profundidades materiais do método. Quero dizer, eu queria falar não de Pindorama, mas do que foi feito do que poderia ter sido Pindorama. Eu queria falar das sobras e de todo um esquecimento de onde viemos e para onde vamos em termos de filosofia da nossa triste história.

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Brasil está longe de ser Pindorama. Brasil, o nosso nome de guerra tem só uns 200 anos. Não é muito mais velho do que o museu nacional que já não existe, embora estejam tentando fazer um remendo, uma múmia com os restos mortais do museu queimado como um pau-brasil que virou cinzeiro.

A “brasilidade” que eu conheço é a de uma árvore que desapareceu, que pegou fogo, que virou cinzeiro, que virou cinzas. E agora os nossos trópicos carnavalescos (pra quem é dos trópicos e dos carnavais, eu sou dos subtrópicos e da estética do frio) perdem a cor. Tudo é carvão, cadáver, resto, nesse país perdido nas trevas em que foi lançado por tantos algozes extraindo dele o que pode e o que não pode ser extraído há 500 anos. Extraindo ainda hoje, os minérios (e pensem na morte anunciada de Minas, como Minas vai sobreviver a tantos cadáveres, tanta desgraça, a tanta Samarco e Vale?), a flora, a fauna, o nosso povo explorado pelo capital que suga direitos como se fossem sangue.

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Penso agora naqueles velhos homens brancos europeus com o pau podre de sífilis empesteando as mulheres vítimas da desgraça eterna de ser mulher em qualquer tempo da sociedade patriarcal.

Eles vem do inferno e estão prontos à matança.

Penso agora na família Drácula, que detinha o poder na Transilvânia – leia o livro Dracula: A Biography of Vlad the Impaler  (E.P. Dutton) e volta ao poder, dessa vez encarnada no Brasil. O conde empalador e seus filhos abjetos, traidores, monstruosos fazendo o que bem entendem contra o povo que os elegeu ao sabor da miséria espiritual de uma época. A história transilvânica se repete no Brasil-eterna-terra-de-ninguém.

O mundo seria mais misterioso se o simbólico e o real não estivessem tão intimamente entrelaçados.


> Leia a coluna de Marcia Tiburi toda quarta no site da CULT

(5) Comentários

  1. Márcia, quando leio seus textos, lembro-me deste verso: “uma tempestade com raios vestidos de arco-íris”. Tua escrita é pura poesia. Você é um Poema, Márcia!

  2. Quem sobreviverá às fragmentações que os governantes do Brasil estão propondo? Quem sobreviverá para recolher e emendar os cacos? Destino de milhões comprometido e futuro incerto

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