A filosofia, a sabedoria e o amor

A filosofia, a sabedoria e o amor
O filósofo é um fora do lugar, que se dirige aos outros e ao mundo com um indisfarçável sorriso “de quem nada sabe” (Foto: Liz Dorea)

 

Todo aquele que entra em contato com a Filosofia como disciplina, seja no ensino médio, seja na universidade, é confrontado com o significado sempre enigmático dessas duas palavras gregas, “philos” e “sophos”, as quais, reunidas, se constituíram e se transformaram num dos maiores legados da história do Ocidente. Como sabemos, são palavras em circulação na cultura grega, muito antes dessa junção entre ambas, tão peculiar e significativa. Seus significados, entretanto, desafiam até hoje os estudiosos e os eruditos. Afinal de contas, “sophos” é saber ou sabedoria? E “philia”, é amizade ou é também amor? Em outras palavras: quais deslocamentos essa união, que resultou em “filosofia”, opera em relação aos usos correntes dessas palavras ou mesmo ao uso que dela fazem Homero, os pré-socráticos e os chamados sofistas?

Devemos, sem dúvida, a Sócrates e a Platão, a demarcação desse campo, dessa atividade e desse modo de ser e de agir, ao qual chamamos de Filosofia. Para Sócrates, não se trata mais de adquirir uma “sophia” no sentido de um “saber-fazer”, pressuposto fundamental para a aquisição do saber em geral, mas sim de colocar uma questão, uma pergunta, uma dúvida, expor um problema. É essa a bela e misteriosa imagem que Platão nos legou de Sócrates no Banquete, aquela enfim, de que o filósofo é, antes de mais nada, movido por um desejo, que não seria mais o do “saber-fazer”, mas sim o de alcançar “a” sabedoria. Basta a presença de Sócrates – ficamos sabendo disso pelo “testemunho” de Alcebíades – cuja aparência física era inteiramente incompatível com os ideais de beleza da Grécia clássica, para que se impunha àquele que o ouvia, uma mudança de atitude: não mais o passivo receptor de lições de retórica, do aprendiz de técnicas do bem falar, que deveriam ser exercitadas no clima agonístico da pólis, mas sim, agora, aquele que é levado, pelas interrogações e pelos problemas, a colocar-se, ativamente, diante de si mesmo e do mundo. Sócrates é aquele, conforme lemos no Teeteto, que se define como átopos, como o “sem lugar” e, no limite, como o “esquisito”, e como aquele que apenas cria aporias, isto é, que não resolve muita coisa ou coisa nenhuma, mas, entretanto, gera perplexidade e desconfiança diante da organização aparentemente harmoniosa da pólis e do cosmos. O “não saber” socrático adquire aqui toda a sua significação, na medida em que ele se constitui a partir de uma crítica contundente à pretensão dos sabidos. Ao final de contas, o resultado da conversação, do diálogo, mesmo que ele se de Sócrates a se deslocar, a mudar de posição, a tomar consciência das formas contraditórias, pelas quais se expressa e por meio das quais pretende compreender a si mesmo e ao mundo.

Entretanto, a história da Grécia no período que chamamos de Helenismo, isto é, daquele que é correlato à sua decadência política, iniciada com a dominação macedônica, criou uma resposta rápida dos filósofos: o grande edifício erguido pela tradição socrático-platônica e continuado, em larga medida, por Aristóteles, já não era mais inteiramente suficiente. A via contemplativa, ideal da vida filosófica, parecia já não bastar como caminho para a realização da felicidade. A filosofia revelara-se impotente diante da rápida corrupção dos ideais da democracia. Assim, era preciso encontrar outros caminhos, presumivelmente mais firmes e mais seguros, para que neles e por meio deles, o ideal da vida feliz pudesse ser alcançado. A política, portanto, não deixa de estar no centro das preocupações, de tal modo que não se trata de pensar que a filosofia helenística pudesse ser reduzida a uma etapa de conformismo e resignação. Muito pelo contrário: em larga medida impulsionados por essa constatação, ou seja, de que os esforços anteriores dos filósofos não conseguiram impedir a degradação da experiência democrática, que estoicos, epicuristas, céticos e cínicos pensam, cada um ao seu modo, as dimensões do prazer e do sofrimento, da vida e da morte, do corpo e de suas intensidades. Nesse sentido, os cínicos ocupam um lugar especial. Considerando-se de todo modo como “socráticos”, eles radicalizam a atitude e o gesto de Sócrates, desafiando e enfrentando as normas da cidade e as regras do bem-viver, introduzindo na figura e na atitude filosófica a dimensão, que podemos chamar de transgressiva. Tal transgressão vai estar diretamente implicada com uma atitude claramente política. É bastante conhecida a resposta de Diógenes, o cínico, a Alexandre, o grande conquistador: “Eu sou Alexandre, e tu, quem és?”, pergunta o conquistador a Diógenes. E este, altivo e absolutamente sereno, responde: “Eu sou Diógenes, o cão”! Se o álgama que Sócrates traz dentro de si, que fascina e encanta seus interlocutores, apesar de sua feiura, é a incomensurabilidade dos tesouros que se esconde na sua alma, o álgama de Diógenes é a revelação de nossa condição animal, como forma não apenas individual, mas também social e política, de contrapor-se ao poder e às formas de dominação. Por condição animal, não se entenda aqui uma ausência de racionalidade e um entregar-se às forças da desmesura, mas a revelação de que o filósofo é portador de algo que é da ordem do indomável e do indomesticável. Este é o seu álgama! Ao contrário de Platão, que um dia pensou em ser o conselheiro de um tirano, para levar até ele a luz da razão, Diógenes afronta o poder em nome de um ideal de autonomia e liberdade. Ele não quer ensinar Alexandre, Diógenes quer dizer a ele que, como um cão, está pronto a atacar quem pretender invadir o seu território: Alexandre pode ser o senhor da Grécia, mas nunca será o dele, Diógenes! De todo modo, ambos, Platão e Diógenes, de forma complementar e contraditória, marcaram nossa identidade como sendo a do desconforto diante das formas de autoridade e dominação. E todas as vezes que esse desconforto foi ou é abandonado por uma servidão – muitas vezes voluntária – às esferas do poder, o filósofo assemelha-se ao déspota, aquele que, originalmente, era o seu oposto.

Em que sentido então, podemos falar de “philia”, desde que, já sabemos, “sophia” diz respeito à sabedoria?  Em que consiste, exatamente, este anelo, esse impulso, esse desejo, atravessado por uma dimensão erótica? Não se trata mais do Eros como reunião harmoniosa e feliz das partes separadas, que finalmente se encontram e, em especial, de nenhuma caracterização de Eros como um deus. Afinal de contas, a um Deus nada falta e só a um Deus se pode atribuir uma completude. O filósofo é, antes de tudo, aquele que compreende, de uma forma ao mesmo tempo irônica e trágica, que ele nada sabe – uma vez que a sabedoria funciona como uma espécie de ideal normativo, mas, por natureza, inalcançável na sua totalidade e plenitude – e que, por isso, ele pode fazer da ironia uma perspectiva metodológica, ao mostrar que não pertence ao mundo dos sábios, mas, ao mesmo tempo, que não pertence ao mundo dos deuses.

O filósofo é, assim, um desajeitado, um fora do lugar, que se dirige aos outros e ao mundo com um indisfarçável sorriso “de quem nada sabe”. Mas, por outro lado, há aí uma dimensão que podemos chamar de trágica, uma vez que essa certeza do “nada saber”, essa espécie de ceticismo fundante de toda atitude filosófica, não impede que, mesmo assim, por amizade, por amor, por desejo, ele queira, insista, em conhecer a verdade, isto é, o troféu que o espera ao fim da caminhada. Desajeitado, estranho, esquisito, ele será, dirá muitos séculos depois, um crítico e um legatário dessa história, um péssimo conquistador, incapaz de conquistar a verdade, essa “mulher” tão desejada. Ele teria jogado fora, rápido demais, a astúcia e a habilidade, a lábia, que os sofistas insistiam em nos ensinar e que é tão eficiente nas conquistas.

Nessas rápidas linhas gerais, tentei esboçar uma espécie de gênese dessa figura estranha e esquisita. Gênese no sentido de restituir, no presente, um elo geracional, que diz respeito, antes de tudo, à memória de uma certa atividade, a qual alcançou, na nossa história e na nossa cultura, um lugar absolutamente ímpar. O recurso à tradição não significa, portanto, um simples recuo no tempo, para encontrar em algum ponto já quase inteiramente perdido de nossa história, um começo ideal e feliz. Ao contrário, é interrogando essas imagens quase arcaicas, que podemos, de algum modo, compreender um pouco do nosso presente. Evidentemente que, aqui, expresso apenas uma posição a esse respeito, que não é nem unânime, nem pacífica: a de que a função da filosofia e do filósofo é sempre interrogar o seu presente. Entretanto, essa interrogação não pode fazer, jamais, tábula rasa de nossa própria história. A tradição não é convocada como um apêndice, um adendo erudito, um ornamento, mas sim porque ela ainda ecoa e vive no nosso presente. E isso, de uma maneira ambígua e contraditória.

O impasse atual

Pensemos, por exemplo, na associação tão rotineira e comum entre filosofia e inutilidade, entre filosofia como mera especulação, considerada, em geral, vazia e desprovida de sentido, e o mundo das tecnologias e dos avanços da ciência. Pensemos, ainda, na ideia de que a atitude filosófica seria incompatível com as exigências do progresso e do desenvolvimento social. A não ser, é claro, que ela pudesse ser adaptada e moldada às exigências de um mundo, em cujo centro não estão mais os ideais da educação e da formação, daquilo que os gregos chamavam de Paideia, mas as exigências imediatistas do mercado. Nessa perspectiva, qualquer estímulo a sua presença, seja no âmbito mais formal dos cursos universitários – então apenas nos cursos específicos de Filosofia, pois existe uma demanda por conhecimentos filosóficos, a partir de áreas tão próximas, como as do campo das Ciências Humanas, Letras e Artes, mas também de áreas aparentemente longínquas, como é o caso das Ciências da Computação – seja no âmbito mais amplo, quando a filosofia, extrapolando os muros da universidade, chega mais longe, por meio dos jornais, da internet, da televisão e dos inúmeros projetos de extensão surgidos no interior das universidades, precisa ser desvalorizado e, no limite, desqualificado. Tanto a atitude interrogativa, problematizadora, quanto o seu necessário complemento, que é a atitude transgressora e desafiadora diante das instâncias dominantes, precisam ser esvaziadas do seu conteúdo perigoso. Só assim, por um combate incessante contra imagens e atitudes, que nos foram legadas pela tradição, é que a filosofia, pelo seu reverso, pela sua imagem adaptada e conformada, pode ainda sobreviver.

Evidentemente, que a comunidade filosófica, na sua esmagadora maioria, não pretende e não pode renunciar a essas imagens e atitudes, as quais, embora reformuladas, negadas, criticadas, continuam, de algum modo, definindo e orientando a nossa prática. A ideia de que a filosofia é, essencialmente, problematizadora não quer dizer, entretanto, que ela permaneça na problematização e, portanto, prisioneira das aporias. Por outro lado, esse amor desinteressado pela verdade esconde, num jogo de máscaras, um interesse maior, que se dirige, desde sua formulação clássica, para a conquista da verdade. Que hoje possamos dizer, com alguma segurança, que a verdade é historicamente construída e, portanto, sujeita às intermitências da história, só radicaliza, por outro lado, nosso desejo de encontrar a verdade. Se somos prisioneiros de algo, esse algo é, justamente, a busca da verdade.

Entretanto, tudo isso só faz sentido – e aqui, novamente, voltamos à tradição – porque a filosofia é “filha da cidade”, ou seja, que seu caráter problematizador, que põe em dúvida as verdades estabelecidas, só é possível no interior de um espaço democrático. Sem a experiência democrática da Grécia, não haveria filosofia. Somente num espaço democrático é possível que verdades estabelecidas – no caso da Grécia, pelo mito e pela religião – pudessem ser confrontadas, discutidas, problematizadas, ao ponto de que, ao final, tivéssemos o aparecimento de um outro tipo de saber. Ora, quanto mais esse espaço se estreita, quanto mais em nome da democracia se diminui o espaço democrático, mais a filosofia só pode ainda existir pelo seu reverso, reduzida ao jogo que une o útil ao lucro e que condena as formas de transgressão e de insubmissão. Tanto o álgama de Sócrates quanto o de Diógenes precisam ser extirpados, como se fossem doenças contagiosas. Não por acaso, por sua vez, esse estreitamento do espaço democrático assume, nos nossos dias, no Brasil, em especial, a forma de um combate purificador, eugênico, cuja norma é, no geral, uma leitura tão estreita quanto o espaço que respiram seus defensores, dos textos sagrados, igualmente fundantes de nossa cultura. A higiene social parece não caber mais propriamente aos médicos e psiquiatras, mas aos pastores e pastoras das mais diferentes filiações religiosas. São eles e elas que pretendem estabelecer a distinção entre saúde e doença, normal e anormal, certo e errado, verdadeiro e falso. Esse estreitamento, por fim, alia aos operadores primeiros dessa higiene social, um modo de pensar a filosofia que contraria, nos seus aspectos mais fundamentais, o legado da tradição. Assim, desqualifica-se, num único gesto, tanto a tradição mais distante, à qual nos referimos acima, quanto a mais próxima, aquela que surge, irremediavelmente, com o aparecimento das universidades e com a institucionalização do ensino da Filosofia.

Não somos ingênuos para deixar de reconhecer que o surgimento das universidades ainda na Idade Média reformulou inteiramente a ideia do ensino, da concepção e da prática da filosofia. Não estamos mais nos Jardins de Epicuro, nos passeios aparentemente desinteressados, seguindo Aristóteles ou na Academia platônica. Muito menos, exibindo nossas “sem-vergonhices” em praça pública, como Diógenes. Transformada em pressuposto fundamental de toda ciência, de todo conhecimento que se queira considerar como “verdadeiro”, a filosofia se tornou não apenas uma interlocutora fundamental, mas, principalmente, um saber sem o qual os outros saberes perderiam seu sentido. E aqui moldou-se essa outra imagem, igualmente tão forte, mas que em breve seria desmentida, de que a filosofia é “a mãe de todas as ciências”. Desmentida, na medida em que as ciências particulares cada vez mais procuravam encontrar, por elas mesmas, seus próprios fundamentos, tentando refazer a sua história e marcar sua gênese propriamente dita, a partir do momento em que abandonavam a “mãe”. Sozinha, sem suas filhas, essa mãe tão poderosa precisou se reformular e, em vez de recusar-se a receber suas filhas de volta, precisou não só reconhecer a autonomia e a independência de sua prole rebelde, mas também e, principalmente, percebeu que precisava também aprender com elas. Essa parceria, não sem tensões e problemas, entre a filosofia e as ciências, ou melhor, entre “as” filosofias e as ciências, passou a constituir um outro legado, tão importante e tão necessário quanto aquele que herdamos dos gregos. Assim sendo, repetindo o mesmo refrão como uma litania, quanto mais o espaço democrático se estreita, mais o diálogo entre as filosofias e as ciências, tão importante para o desenvolvimento científico, tecnológico, mas também social, precisa ser interrompido. É só por um desconhecimento da trajetória histórica de nossa cultura, que se pode reduzir a relação entre as filosofias e as ciências, entre a inutilidade das primeiras e a necessária utilidade das segundas. Como se as ciências e os cientistas não pensassem, como se estes fossem como as máquinas e os instrumentos por eles mesmos criados, como se a fábula do médico e do monstro, enfim, se concretizasse. É necessário lembrar que qualquer desqualificação da filosofia implica, necessariamente, uma desqualificação da ciência, reduzida a um saber meramente técnico e operacional.

Por fim, gostaria de ressaltar que a filosofia que fazemos no Brasil conserva, de algo modo, elementos dessas duas tradições: é problematizadora e transgressora e, ao mesmo tempo, segue os padrões de rigor que se espera da sua inserção na universidade. Podemos, entre nós, discordar do que significam essas imagens do filósofo e da filosofia. Entretanto, essa discordância aponta para algo fundamental, qual seja, ao invés do estreitamento, o alargamento do espaço democrático. É só assim que, aos poucos, pudemos enfrentar questões tão candentes, tão difíceis tendo em vista a nossa história e a nossa formação cultural, como é, por exemplo, a discussão sobre a filosofia feminista ou ainda a filosofia feita por mulheres. Esse é apenas um exemplo do quanto nos dispusemos, com maior ou menor abertura, a enfrentar o fantasma da intolerância e do machismo. Ou seja, em outras palavras, só fazemos inocular mais veneno no nosso potencial contagioso. Amar a sabedoria, desejar a sabedoria, ser amigo da sabedoria, só pode significar, portanto, amar e desejar a verdade como forma de emancipação e garantia da liberdade. Com isso, ela se torna incompatível com o estreitamento do espaço democrático que estamos vivendo, assim como com o seu reverso, ou seja, as formas de filosofia que só podem respirar no interior desse estreitamento e que transformam o “amor” à sabedoria em “ódio”.

Ernani Chaves é doutor em Filosofia pela USP e professor titular da Faculdade de Filosofia da UFPA

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