Fernanda Gomes: por uma geometria da fragilidade

Fernanda Gomes: por uma geometria da fragilidade
A artista carioca Fernanda Gomes, que está com obras expostas na Pinacoteca de São Paulo (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

 

Fernanda Gomes é dessas artistas que trabalham com o quase-nada. A belíssima retrospectiva de sua obra na Pinacoteca do Estado expõe a potência vigorosa de singelos objetos e de seus efeitos compositivos com o espaço e com suas luzes e sombras. O branco é elemento central – não se trata apenas de uma cor a integrar sua paleta. A eloquência do branco está em sua capacidade reflexiva e refratária, que obriga os olhos a se voltarem para aquilo que está além do próprio objeto observado. 

Com essa cor, capaz de convocar registros da ausência, presentificam-se fibras das diferentes matérias, fiapos de tecidos, bordas pouco alinhavadas das coisas. Fernanda Gomes introduz a delicadeza da vida no repertório concretista das artes. Os contornos geométricos de vários objetos dispostos não enfatizam suas formas próprias. Se Fernanda Gomes os evoca, é para e compô-los com os outros elementos e realçar o vazio do espaço. O que resta dos próprios contornos geométricos de suas obras é, então, uma fragilidade extrema. A linha, condição de possibilidade do desenho, esvoaça com pequenos sopros de vento. Sua rigidez retilínea é substituída por filigranas de curvatura – a linha tem seus caprichos e resiste a manter-se reta. Seu traçado não encerra uma forma, não faz conter um desenho, mas busca existência ao alinhavar-se numa costura compositiva com a corporeidade da ausência e com as bordas dos outros objetos. Acompanhar o caminho pelo qual a linha segue seu rumo conduz o olhar para outros prismas até integrar cada limite a um conjunto pleno.

Destarte, olhar para um objeto presente naquelas salas nunca significa olhar somente para ele. Uma ideia de todo emerge em cada detalhe. E o que se vê, então, é a brandura da geometria e das formas compositivas. Se a linha é o início de qualquer coisa existente, se ela invoca os primórdios de qualquer forma, Fernanda Gomes a mostra como apelo para conjurar-se com tudo que está a seu redor, enfatiza sua insuficiência inconformada, sua necessidade de existir em pé de igualdade com cada coisa miúda ou quase-inexistente.

Por isso, a exposição das obras não é o resultado de algo previamente elaborado em outro lugar e transposto para aquele local. Fernanda Gomes transforma as salas da Pinacoteca numa espécie de atelier no qual a confecção das obras coincide com sua condição de exibição. Se tudo assume relevância, se cada filigrana de matéria ou cada ínfimo objeto merece a exaltação de sua beleza e de sua importância, não faz sentido depurar rebarbas, extrair imperfeições, esconder a organicidade própria às coisas.  É necessário, ao contrário, que essas minúcias possam se expressar, cada uma delas a sua maneira e em consonância ou tensão com as características de cada um dos outros elementos dispostos.  

Os objetos também reivindicam seus lugares de fala. A voz e o idioma singular de cada ínfimo elemento também pedem escuta e exercícios de tradução. Por isso, recorrer ao expediente de sobrepor à fala própria às coisas expostas outras de críticos armados de referências teóricas seria um gesto de violência. Fernanda Gomes é uma artista que concede oportunidade de expressão aos objetos e convida os espectadores a saírem de si para ouvirem línguas quase esquecidas num mundo tão prenhe de falatório repetitivo.


Alessandra Martins Parente, psicanalista, coordenadora do Projeto Causdequê? (UBS-Pinheiros/Programa da Saúde do Adolescente do Estado de São Paulo) e membra do GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia), do Latesfip-USP (Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise) e do GEPEF (Grupo de Estudos, Pesquisas e Escritas Feministas.

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