A fenomenologia feminina de Renaud Barbaras

A fenomenologia feminina de Renaud Barbaras

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Aparentemente, não encontramos nos livros de Renaud Barbaras e, ainda menos, em seus avanços teóricos recentes, muitos vestígios da recepção francesa da fenomenologia, embora essa impressão exija uma avaliação mais cuidadosa. Sua tese de doutorado, publicada em 1991 sob o título De l’être du phénomène: sur l’ontologie de Merleau-Ponty, impactou profundamente a forma como lemos a ontologia indireta, esboçada em O visível e o invisível. A despeito da boa recepção desse trabalho inicial, Barbaras seguiu sua pesquisa de modo singular, não mais se dedicando exclusivamente ao estudo de Merleau-Ponty.

Embora tenha havido esse distanciamento em relação ao pensamento existencialista, o filósofo poderia argumentar, como de fato o faz, que seu modo de compreender o ser-no-mundo sempre teve parentesco com a noção sartreana de liberdade. Ledo engano. O nada de Sartre carrega em si todo o peso do ser. A leitura atenta de O ser e o nada mostra que o último é uma figura ética, aquela que melhor expressa a responsabilidade não condicionada segundo a qual existimos. O vazio da subjetividade barbarasiana é de outra ordem. Trata-se de depurar a compreensão da subjetividade para consagrá-la ao mundo e, assim, descrever a origem de toda e qualquer experiência ôntica.

Decerto, ao longo das últimas três décadas, Barbaras vem despindo a subjetividade intencional, de modo a dar um novo sentido à fenomenologia. Fruto de um trabalho especulativo calmo e constante, sua filosofia nos ensina como é possível pensar a partir de categorias basilares da fenomenologia. Mais que isso. Seu pensamento aos poucos nos mostra que certos conceitos cunhados por Husserl, tais como o de vivido ou mesmo a ideia de redução fenomenológica, são dispensáveis porque nos impedem de compreender o funcionamento do a priori da correlação universal entre sujeito e mundo.

Ora, é preciso despir a subjetividade para então mostrá-la em sua relação estruturante com o mundo, notando-se, assim, que ela é o movimento que o traz à fenomenalidade. Enquanto Husserl, através da redução transcendental, buscava retirar a consciência do mundo para protegê-la de qualquer tipo de reificação, Barbaras, ao contrário, abandona a noção de vivido, enraíza o fenômeno no mundo e, por consequência, faz com que este, em seu processo de fenomenização, originalmente se relacione com o polo intencional. A subjetividade que daí resulta, por sua vez, não é propriamente coisa, embora seja, de certo modo, irremediavelmente mundana.

Em determinada fase de sua obra, Barbaras investigou com paixão a noção de vida atrelando-a ao desejo. Obras como a Introduction à une phénoménologie de la vie, publicada em 2008, fazem uma minuciosa descrição da vida no intuito de trazer à luz o seu verdadeiro sentido. Parecia-lhe que o caráter vital da subjetividade poderia ser o ponto de chegada coerente de uma filosofia que buscava desvendar a intencionalidade sem, contudo, separá-la do mundo que ela traz à visibilidade. Barbaras argumenta que a vida não é uma existência determinada, mas um processo de individuação que se confunde com a experiência transitiva do viver.

Contrariando a ideia tradicional de vivente, concebido como mero movimento de adaptação e de autoconservação, o filósofo mostra que o dinamismo vital é, na verdade, autorrealização da vida, pois aquilo que a tradição entendia como instinto pode ser descrito como pulsão, isto é, como abertura indeterminada à transcendência. Ao realizar esse caminho investigativo, o filósofo identifica pulsão e vida, fazendo-os convergir na experiência original do desejo. Quer dizer, o desejo é o devir da vida na medida em que esta se reporta à exterioridade; ele não é necessidade de alguma coisa que se poderia nomear ou enquadrar na forma do objeto.

Surpreende-nos agora, especialmente a partir da publicação de L’appartenance: vers une cosmologie phénoménologique, obra de 2019, com uma nova investida: é preciso dar mais um passo nessa incansável descrição fenomenológica da correlação universal para enfim compreender o caráter originalmente espacial da relação entre sujeito e mundo. Se o tempo foi, pelo menos desde Kant, o paradigma segundo o qual pensamos a subjetividade (e tudo o que dela decorre: o conhecimento, a experiência, a memória etc.), em Barbaras, esse papel é protagonizado pelo espaço.

De certo modo, desde o começo de sua obra, o filósofo tenda dar conta da cisão fundamental que dá nascimento simultâneo ao sujeito e ao objeto, algo que já aparecia na obra de Merleau-Ponty quando o autor da Fenomenologia da percepção investigava o conhecimento a partir da ideia de co-naissance. Trata-se, em Barbaras, de mostrar que o aparecimento da subjetividade e do mundo fenomenal dependem de uma fratura no interior do ser, a qual origina a distância necessária para que haja experiência subjetiva do exterior. A experiência não depende, portanto, de uma interioridade temporal, capaz de organizar o mundo objetivamente. Pelo contrário, ela tem origem quando se realiza a distância que separa o sujeito do mundo.

Numa época em que se busca compreender aquilo que veste e transveste os sujeitos (a cor, a raça, o gênero, a classe, a idade etc.), nosso filósofo caminha tranquilo, descrevendo as peripécias de sua nova descoberta: o trajeto por vezes sinuoso que esse polo intencional, abordado em seu escopo dinâmico, é capaz de traçar no e do mundo. Audácia cujo caráter revelador precisamos reconhecer: a filosofia de Barbaras não nos fala das grandes estruturas, tampouco nos ajuda a criticar diretamente as desigualdades que marcam a vida social, e as ideologias que as mascaram ou naturalizam. Contudo, a despeito disso, ela direciona nosso olhar para a delicadeza que desponta no nascimento de toda e qualquer experiência subjetiva.

Gilda de Mello e Souza diria que há algo de feminino nesse modo de pensar: com o nascimento transcendental da correlação subjetividade/mundo, a intencionalidade é o ponto a partir de onde se desenha um trajeto, o qual, conforme tateia, mergulha nas profundezas do ser. Seu destino não é sentir-se radicalmente avessa às coisas; pelo contrário, quanto mais avança, mais pertence ao mundo – como se soubesse desde o início que a cisão que dele a separa é precária e que, no fundo, nada mais é do que coisa entre coisas.

A subjetividade que daí desponta não é, portanto, kosmotheoros; ao contrário do constante e pretensioso movimento de domínio dos objetos, característico da universalidade masculina, ela jamais sobrevoa soberanamente aquilo que experimenta. Assim, seu contato com o mundo se faz por um olhar míope, por um tipo de visão que na obra de Clarice Lispector transita “no terreno que o olhar baixo abrange”, onde “as coisas muito próximas adquirem uma luminosa nitidez de contornos”.

Distante, mas, ao mesmo tempo, atada ao mundo, a subjetividade barbarasiana pode ser tão familiar ao espaço de sua existência quanto a bailarina que domina o palco com a leveza quase imaterial de seu gesto, ou o como jogador de futebol, cujo movimento desafia as leis da física, transformando-o em senhor no interior de quatro linhas. Tendo em vista essa despretensão com que a subjetividade se insere no mundo, podemos pensar que a busca do filósofo por descrever com rigor o a priori da universal da correlação sujeito/mundo o leva a se aproximar daquilo que Fred Astaire demonstrou com sua dança:

Fred Astaire é um dos poucos gênios artísticos do século 20 e foi bom que não fosse bonito, como Robert Taylor, Clark Gable, Gary Cooper ou Tyrone Power, porque, sendo como era, manteve-se gesto, gesto puro, graça pura, arte pura, libertando-se dos cacoetes da mocidade para se tornar na dança um desenhista, um dançarino gráfico, puro arabesco sem cor (Gilda de Mello e Souza, A ideia e o figurado).

Com Barbaras, a filosofia é entregue à descrição da pura beleza do nascimento de uma subjetividade irremediavelmente mundana, desejante e transitiva. No final das contas, o filósofo, sem o saber, se aproxima das reflexões de outro expoente do existencialismo francês. Pois, decerto, sua fenomenologia feminina universaliza a compreensão beauvoiriana do devir: ser-no-mundo é tornar-se algo, sem saber ao certo o que se deseja. Mas é também, acrescenta Barbaras, desenhar um mundo que, antes de ser propriedade de alguém, é território de experiência.

 

Silvana de Souza Ramos é mestre e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), onde atua como professora livre-docente.


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