Feminismo e liberdade

Feminismo e liberdade

Conversar sobre feminismo

Sempre lembro da pergunta de Walter Benjamin “como conversavam Safo e suas amigas?” quando penso na diferença que isso pode fazer em termos de conquista democrática do poder. Se levarmos em conta que o poder é algo necessariamente nascido da articulação da linguagem humana, do fato de que os seres humanos interagem dentro de seu universo de linguagem, sobretudo pela conversa, temos que, na base do poder, está uma forma de conversar.

Conversar é uma forma de articular-se ao outro, uma forma de criar o espaço e o tempo entre nós, uma forma de se posicionar no sempre criado e recriado âmbito da participação. Por isso, podemos dizer que, conversar, em termos políticos, é uma forma de criar poder. Quando lemos os diálogos de Platão, tendo em vista que o diálogo é uma forma qualificada e especializada de conversa, sabemos que ele está não apenas mostrando como se pode fazer filosofia pelo diálogo, mas também que todo o poder que advém do diálogo está dado aos homens que se reúnem nos mais diversos momentos para pensar juntos.

Lembremos do caso do Banquete. Que as mulheres que ali serviam os alimentos e tocavam flauta tenham sido banidas do diálogo quer dizer que elas não podiam participar, que elas não estavam autorizadas para a conversa. Mas quer dizer também que elas não estavam livres para o pensar. Ora, quem não está autorizado ao livre pensar está banido do poder.  Gostaria de dizer neste ponto que, se o feminismo puder ser uma defesa da liberdade de pensar das mulheres e de todos os seres oprimidos pela violência de gênero, econômica e política que instaura a dominação masculina, então, o feminismo é a necessária revolução que vem se fazendo sem violência.

Liberdade: um problema feminista

Uma reflexão sobre a autorização para ser livre, e o termo liberdade que assusta em certos contextos, inclusive quando se trata de feminismo, se torna urgente entre nós. Usarei um exemplo que fez parte de meu cotidiano há alguns dias quando, em debate, fui acusada de praticar “feminismo liberal”. O feminismo liberal apareceu na expressão de quem fazia a crítica como algo ruim em si. Não gostaria pessoalmente de praticar um feminismo com rótulos, mas também não gosto de ficar em cima do muro, de modo que creio, seja importante afirmar, que o feminismo que eu defendo, é um feminismo materialista histórico e, obviamente, gosto da teoria queer que rompe e perturba todos os rótulos. Mas mesmo em relação à teoria queer não creio que possamos simplesmente adaptar uma bandeira feminista estrangeira ao caso brasileiro que é muito específico. Por isso, como feminista, acredito que estou fazendo parte do processo pelo qual criamos o feminismo entre nós, um feminismo cheio de influências, mas que não é eurocêntrico, nem apenas teórico, muito menos subjugado a tendências tais como esquerda ou direita.

Na ocasião do debate, eu tinha começado a minha fala com um jogo retórico. A retórica é a roupa da linguagem e quem discursa quer estar bem vestido. E, neste sentido, eu falava de como tinha me tornado feminista. A propósito da adaptação da frase de Simone de Beauvoir que reza que “ninguém nasce mulher, torna-se”, eu havia dito “ninguém nasce feminista, torna-se” (Luciana Genro).  Para contar como me tornei feminista eu levantei alguns mínimos aspectos da minha vida pessoal e profissional.  Creio que em vários momentos, todas as feministas contam algo de pessoal, a genealogia, algo que podemos chamar de “novela” pessoal feminista, mas não com intenções individualistas. Trata-se, nessas narrativas (como quando Judith Butler é interpelada pela estudante que pergunta se ela é lésbica), da expressão da particularidade de cada história de vida que expressa sua singularidade e sua adesão ao movimento ou à teoria-prática feminista que eu e muitas outras tratam como uma ético-política. Contei, então, algo que me estarreceu quando há poucos anos desmascarei a minha própria ideia de liberdade: eu me dera conta de que aquilo que eu achava que era uma espécie de liberdade radical própria da minha pessoa era, na verdade, o resultado concreto do fato de que, em família, ninguém esperava nada de mim em termos profissionais. Porque no sistema da dominação masculina, na qual gerações e gerações foram criadas, não se espera de uma mulher nada além de um casamento e filhos.

Este foi um momento importante no meu particular “devir-feminista”, o momento da desmistificação da minha própria liberdade.

A questão é que a ideia de que eu era livre, de fato me ajudou a me tornar uma pessoa livre, pelo menos comparativamente a pessoas que se ressentem de sua própria falta de liberdade. A utopia da liberdade pessoal estava, a meu ver, antecipada na minha prática, pelo meu pensamento. E tinha me levado a um caminho que era, a meu ver, autêntico dentro do que isso possa significar em se tratando de uma experiência humana. Seria impossível para mim, mesmo percebendo as numerosas imposições e heranças de classe e gênero e, no meu caso, também de raça, dizer que me sentia oprimida pelo simples fato de que eu não me sentia. Isso não quer dizer que as cenas de opressão não estivessem presentes em minha vida. Certamente eu podia estar me enganando para poder seguir na minha própria trajetória. Mas eu nunca fui, talvez por educação, talvez por temperamento, talvez também por tipificação psíquica, alguém que tenha tido o azar de viver fortes opressões de gênero. Isso não quer dizer que eu não soubesse delas. Minha própria mãe, uma mulher que experimentou diversas opressões, me legou esse espírito de liberdade que eu entendo como uma utopia que pode ser antecipada diariamente. Não vejo nenhum mal ou problema em me pronunciar assim. A história subjetiva está intimamente entrelaçada à história objetiva e, salvo as ideologias espontâneas da qual tantos são vítimas, há nelas muito de verdade.

Naquele momento, tendo em vista minha própria mãe, avós, tias, bisavós e as mulheres que, no passado, lutaram pela libertação das mulheres, permitindo que eu hoje possa me dizer “livre”, eu contei que sou feminista por opção e por adesão a uma causa, mas não pelo posicionamento como vítima do patriarcado. Postura com a qual vejo que muitas feministas compactuam hoje em dia. A questão da mulher-vítima é das mais sérias e requer muito cuidado ao ser tratada. Por isso, vou desenvolvê-la em outro texto.

Imagem: reprodução

Mas eu não estava defendendo a liberdade no sentido do liberalismo. Não estava defendendo a liberdade em sentido abstrato. Estava combatendo os idealismos e, ao mesmo tempo, promovendo o poder das mulheres como seres que podem romper com o sistema de opressão pelo próprio “empoderamento” tratado como uma atitude, um gesto e uma ação que implicam a criação de voz, espaço de fala e de escuta, espaço de diálogo entre mulheres. O necessário “empoderamento” das mulheres implica sair da condição de vítimas, mas isso não se dará sem arranjos simbólicos e imaginários novos, capazes de mudar situações concretas.

Não tendo sido criada para acreditar na ideia de que homens e mulheres fossem essencialmente diferentes, eu narrei rapidamente como percorri o meu caminho considerando as minhas escolhas, sortes e azares, algo que não dependia do meu lugar de gênero. Até porque, no meu mundo, estudar filosofia era algo tão incompreensível que, por insistência da minha própria parte e porque ninguém sequer imaginava como se poderia combater a minha prática, eu já estava conquistando a minha liberdade. Eu só me dei conta de que não havia muitas mulheres estudando filosofia quando entrei no doutorado da UFRGS em 1994, antes de completar 24 anos. Na aula do prof. Stein só havia homens e todos mais velhos. E confesso que nunca achei que eu fosse diferente deles, senão pela idade. Quando eu fui aprovada no doutorado, lembro de que os colegas homens que disputavam a vaga não foram aprovados. Falo isso hoje em dia, pois naquela época eu não me colocava que o fato de eu ser ou não mulher afetasse a minha vida. Ingenuidade minha, hoje eu sei, mas estou longe de ser uma pessoa que tenha sofrido por ser mulher. Sofri e sofro por muitas coisas, mas não por ser mulher. Até porque me coloco como mulher apenas em circunstâncias feministas, seja na militância, seja na reflexão feminista. Com isso quero dizer que nem ser mulher, nem ser feminista, são para mim dados naturais. São uma escolha política crítica e criativa.

Portanto, quando falo em liberdade não me refiro à liberdade aviltada pelo sistema liberal ou neoliberal. Falo de uma liberdade que não existe no sistema capitalista. De uma liberdade que é a principal característica da utopia. A liberdade não é mais do que isso e é ao mesmo tempo o que há de mais interessante a ser colocado como foco da política: a liberdade como espírito da utopia. A utopia ainda move as transformações possíveis em um mundo de opressão e de falta de liberdade. A liberdade é algo que se deseja enquanto ela é um sentimento promissor, um sentimento de mais liberdade, um sentimento contrário ao sentimento de opressão. Uma liberdade que é liberdade sobre o próprio corpo, sobre a própria voz, sobre a própria expressão enquanto a liberdade é um movimento na direção da liberdade que, assim como a democracia e o feminismo, nunca está pronta.

Penso em liberdade como sendo o contrário do ressentimento. Ela não pode ser jogada fora porque ela nos livra justamente do peso do ressentimento. A liberdade é a porta que se abre na prática para um outro modo de ser tanto pessoal quando social. Por isso, eu gosto tanto da interpretação da liberdade em Marx que é exposta por Terry Eagleton:  “A liberdade para Marx é uma espécie de superabundância criativa acima do que é materialmente essencial, aquilo que ultrapassa a medida e se torna seu próprio padrão.” A superabundância criativa é, a meu ver, a melhor definição de liberdade. Há, ainda em Marx, a ideia de que o livre desenvolvimento de cada um deve se tornar a condição para o livre desenvolvimento de todos. E, neste sentido, quando uma pessoa se expressa livremente, no sentido da exuberância criativa, eu acredito que ela está inspirando o mundo ao seu redor. Por mais que o termo liberdade seja maltratado pelo liberalismo e aviltado no neoliberalismo, não podemos jogar fora a ideia inspiradora da liberdade como saída de qualquer prisão, seja ela física ou metafísica, seja ela o imediatismo, seja o capitalismo, seja uma visão de mundo restrita. No sentido em que eu uso o termo “livre” penso que posso, ao me auto-designar,  e para inspirar os meus estudantes e ouvintes, falar no sentido de Marx que era alguém que sabia do peso da classe e da história em nossos ombros, mas que sabia também que o ser humano é aquele que, construindo-se naquilo que ele faz, torna-se alienado ou livre. A liberdade em Marx é um salto na contramão da alienação.

Feminismo como escolha

Assim, movida pelo meu sentimento de liberdade nesse sentido marxista – que é um sentimento e não uma mera emoção -, movida por algo subjetivo mas que influencia, certamente, a objetividade – enquanto os afetos que temos pelas coisas e os conceitos que temos das coisas nos levam a determinadas práticas concretas – é que eu disse que não precisava do feminismo para atuar no mundo. Eu realmente não tenho com o feminismo uma relação de necessidade. Naquele momento do debate, falei que eu era feminista por solidariedade a todas as mulheres que sofreram no passado, mas também as que lutaram no passado. Certamente há muitas que sofreram e muitas que lutaram. Muitas que sofreram e lutaram ao mesmo tempo. Certamente a maior parte das que sofreram nem sempre lutaram e as que lutaram pelo menos algumas vezes podem não ter sofrido. Digo isso pensando que, na minha ontogênese, em outras palavras, no meu devir feminista, eu não cheguei ao feminismo por necessidade pessoal, mas por desejo, no sentido de Kojéve: como luta de vida e morte que é sempre a luta que constitui o desejo que leva à liberdade de ser, estar, aparecer e expressar-se. Isso não pode ser entendido como fomento à ingenuidade, mas como um dar às costas à opressão que é altamente revolucionário. A superação da opressão implica outro posicionamento diante dela.

Lembro dos versos da música “Pesadelo” de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro que, a meu ver, expõe muito bem esse sentido de liberdade:

“Você corta um verso, eu escrevo outro

Você me prende vivo, eu escapo morto”

O feminismo não é um novo fundamentalismo: quem pode ser feminista?

Podemos partir do pressuposto de que o patriarcado como sistema da dominação capitalista na forma da opressão de gênero precisa ser desmontado, desconstruído, desmoronado. Todas as mulheres podem ser feministas, mesmo aquelas que não sofreram opressões ou violências mais concretas, seja porque foram criadas em ambientes feministas ou anti-machistas, seja porque não introjetaram marcantes imposições de gênero.

O feminismo não é um novo fundamentalismo. Ele é uma ético-política que parte da escuta da diferença, que acolhe e aceita a diferença como seu núcleo e, por isso, não discrimina, nem legisla sobre o que significa ser feminista. O foco do feminismo é a crítica social, do capitalismo e da dominação masculina. A crítica do que significa ser feminista precisa ser primeiramente uma autocrítica.

Quando definimos muito estritamente o que é ser feminista, ou qual o feminismo que está ou não autorizado a existir, começamos a controlar o discurso feminista, infelizmente, no inevitável sentido de corrigi-lo, bem ao gosto do paradigma patriarcal. E ao corrigi-lo, adequá-lo, o risco que se corre, quando se começa a dizer que há posturas feministas corretas e outras erradas, é o risco de transformar o feminismo em objeto de disciplina e controle.

Controlar o que pode ser dito e o que não pode ser dito pode nos levar também à posição autoritária que legisla sobre “quem está autorizada a ser feminista?”. Esta pergunta é, em si mesma, um equívoco. A meu ver, todas as pessoas que se sentem feministas podem dizer que são feministas se agirem coerentemente. Se um homem puder se sentir sinceramente feminista, não vejo porque controlá-lo para que não se diga feminista.

Isso não quer dizer que possamos fomentar a banalização do feminismo. Mas que o feminismo é uma forma de democracia, ele está no cerne da potência da democracia contemporânea.  E corre os mesmos riscos que ela.

O discurso feminista sempre será inadequado enquanto houver dominação masculina. Não são as feministas que devem buscar adequação. Daí a minha simpatia por marcas anarquistas e até mesmo certas práticas que podem parecer bastante histéricas – refiro-me a performances feministas pouco ortodoxas, como a “marcha das vadias” – no feminismo. Todo feminismo é maravilhoso, até porque qualquer flerte com o autoritarismo faria o feminismo cair em auto-contradição ou transformar-se em anti-feminismo, ainda que travestido de feminismo radical.

Gostaria de ressaltar que o feminismo não deve curvar-se à qualquer imposição de identidade. O feminismo precisa ser uma defesa da singularidade que valoriza os direitos das mulheres, a soberania das mulheres em relação a seu próprio corpo. O feminismo não pode ser apenas “isso” ou “aquilo” dentro de disputas epistemológicas internas. Ele é necessariamente plural e precisa manter-se como crítica de um estado de coisas injusto e antidemocrático. Como pluralidade todas as posturas feministas devem ser contempladas, ouvidas, analisadas. Não podemos, portanto, tomar o feminismo como uma “razão” que o colocaria como o novo fundamentalismo. Não podemos dizer o “feminismo é isso” sem levar em conta que essa frase será dita muitas vezes e que só poderá ser dita tendo em vista que ela deve se somar às diversas definições que merecem ser contempladas em uma direção que precisa ser crítica e autocrítica. A pluralidade, a denominação, as caracterizações dos diversos feminismos não precisam entrar em crise, ou em guerra. No campo feminista todo o dissenso é bem vindo. Sob pena de reprodução da lógica masculinista que simplesmente prega uma razão maior do que a dos outros.

É preciso lembrar que conversar é difícil. Mas creio que Safo e suas amigas conversavam livremente e que essa conversa era um poder criativo de democracia, igualdade e de direitos para todos os seres em escala planetária.

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