Esteticomania

Esteticomania
A filósofa Marcia Tiburi (Foto Simone Marinho / Divulgação)

 

O que muitos chamam de “culto ao corpo” é muito antes um escamoteado sacrifício do corpo. O culto nasce de um sacrifício organizado quando o corpo tornado objeto é submetido à máquina. A ideia de um corpo submetido a uma sentença de morte que ele mesmo desconhece já estava à mostra no conhecido conto Na Colônia Penal, de Kafka. Uma versão profana daquela estranha máquina de escrever sobre o corpo que era também máquina de tortura está hoje na academia e na fábrica onde operários continuam ignorantes da verdade que se lhes imprime no corpo.

Mais difícil é perceber que o aparelho fotográfico ou a filmadora, diante da qual os corpos exercitam o estranho “valor de exposição” ao qual se referia Walter Benjamin, também realizam aquela forma de violência à qual corpos dóceis se submetem sem reclamar.

O sacrifício que nos interessa entender no tempo do valor da imagem espetacular surge como negação do corpo por uma espécie de superação do corpo em imagem. O próprio corpo vivo submete-se não apenas à máquina, mas a uma máquina que faz dele imagem.

Essa conversão em imagem é a lógica do espetáculo. Ela implica uma lei em que ser fantasma de si é o resultado inevitável. Lei do não-ser que explica a relação entre os indivíduos humanos e o Deus Capital que só pode ser cultuado na forma da imagem.

Fica claro que, na religião do espetáculo, o culto ao corpo não cultua exatamente o corpo. Reduzido à ponte para o Deus Capital, o corpo que não pode se converter em seu suporte é sumariamente descartado e morto. Sob os “marombados” objetos de culto, um processo de encarceramento é obscurecido: cada coisa é colocada em seu devido lugar na religião do Deus Capital, em que o corpo também tem a sua vez como a morte que chega para cada um. Assim como Cristo na cruz, como a mulher na pornografia, o pobre, o negro no gueto, o adolescente na escola. Antes, o judeu e a histérica, hoje o palestino e a “gostosa”. Porque reduzidos a corpos, cada macaco no seu galho, cada um no seu campo de concentração, se pode exterminá-los mais facilmente.

Mas esse posicionamento que só se dá no esforço da violência só pode acontecer porque cada um, antes, fora feito também imagem, ou seja, representação de algo sacrificável, como um bode expiatório.

Isso vem colocar em cena uma armadilha que recai sobre todos os indivíduos que creem que, não sendo valorizado sem sua imagem, não terão lugar neste mundo. Cada um, à sua maneira, ao ser transformado em imagem, participado grande ritual de redução ao corpo. O corpo é o que é colocado no lugar de baixo, sob a imagem, suportando-a, mas apenas enquanto pode ser morto.

Programa

Mas o que assegura esse tipo de sistema em que se vive um sacrifício do corpo concomitantemente à servidão à imagem? Um  filósofo como Flusser nos dirá que estamos submetidos a aparelhos e programas em cujo fundo jazem teorias científicas desconhecida de seus usuários. Não é apenas a servidão à imagem o que está em jogo, mas a servidão ao programa.

O programa de edição de imagens chamado Photoshop tem a correção como sua função mais comum. Cartesianamente, tudo o que é errado no corpo pode ser corrigido na imagem. A novidade de nosso tempo é um vasto programa estético do qual o Photoshop é a tecnologia mais fascinante. Ela é litúrgica, pois nos promete a chance de alcançar a Imagem Correta desejada em toda Idolatria. Um feito teológico ao alcance de todos, já que o Deus Capital não tem erros.

Esteticomania é como podemos chamar esta mania de correção do corpo pela imagem, que faz do corpo algo reduzido sob – e que serve a – a imagem.

Necessariamente, corpos aparecem no mundo na forma de imagens, mas que a imagem seja uma medida de correção do corpo vem demonstrar o fato de que hoje nos contentamos em ser não mais que espectros.

(9) Comentários

  1. Nós beletristas somos, no mínimo, retrôs.
    A era das letras morreu com o nascimento da imagem e desde então a sociedade é imagética.
    E a imagem, hiper nas suas potencialidades, virou um espetáculo: a sociedade do espetáculo.
    Um escritor é mais a imagem de escritor, suas publicações, sua fama, do que o seu texto, com significado tão amplo, mas com significante pela face sem graça da tipografia.
    E os fotógrafos e tumblrs e instagr.am’s povoam o sucesso da web pelo discurso de que imagens dizem mais que mil palavras.
    Mas é claro, eles não sabem dizer.

  2. Acho que está na moda criticar as pessoas que cuidam da imagem, do corpo, etc, os nivelando aos que possuem problemas de saúde como os anoréxicos ou dismórficos… Já vi modelos com índice de massa corporal de 20 sendo criticadas. Nesta “moda” cabe até elogios a “moda” das gordinhas (finalmente acabando a ditadura da imagem). E a saúde onde fica?

  3. Texto magnífico da consagrada Márcia Tiburi. Filosofia é exatamente isso que ela mostra no seu (dela) artigo: desvelar ‘aquilo’ que todo mundo esconde ou oculta das consciências humanas para que se estabeleça um clarão – como aqui feito pela Márcia – e tenhamos, justamente, a clarificação das realidades sem os abomináveis ‘realismos’ recomendados pelo academicismos e retóricas dos pensadores subvencionados pelas elites peremptas. Wilson Moreira, Curitiba, PR.

  4. O padrão estético coletivo só é formado frente a padrões estéticos individuais, visto que padrão só é padrão se houver repetição, se reverberar. Os focos individuais passam pela forma com que a própria pessoa se vê, como acha que outros a veem, e ao mesmo tempo como cada um individualmente a vê. Bom, o que acontece é que isso gera respostas em formas de atos, dessas pessoas envolvidas, tais respostas são efeitos ambientais prazerosos ou não, positivos ou negativos, que quase como um nó na garganta expressam teorias skinnerianas. O quanto mais nos afastamos, do que a filosofia chama de conhecimento que liberta, mais estamos propensos ao que você titula de maquina estética. Efeitos não se somam apenas, mas subtraem, multiplicam, dividem e finalmente funcionalizam sensações. O que leva vantagem nisso tudo? O que no misturar de sabores é fica mais doce rdsrds Adorei o texto. Bjo, Marcia.

  5. O excesso de estética, atualmente, está relacionada a influência que é imposta na sociedade ao longo do tempo, por exemplo, temos a publicidade do corpo ideal. Mas, não é do contemporâneo que o corpo é usado como simetria, ter uma forma perfeita vem também de ideias do passado, quando lemos sobre a proporção do corpo idealizado pelo filósofo Aristóteles, onde ele valorizava as curvas e as formas. Tudo isso, vem de um processo sociocultural, onde não ter o corpo desejado pela sociedade conduz a exclusão daquela pessoa que não se adapta aos padrões de beleza. A tecnologia ajuda a ter esse ilusionismo, como no photoshop, onde a ferramenta é usada para melhorar aspectos físicos. A busca pela perfeição é alimentada diariamente pelos os meios de comunicações, na qual, somos alienados pela cultura de massa e o diferente acaba sendo um problema para ser aceito diante do outro. Algumas pessoas perdem suas identidades, por causa de normas impostas e outras tem problemas mais sérias como a depressão.

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