Espectropolítica: a política reduzida à fantasmagoria

Espectropolítica: a política reduzida à fantasmagoria
Característica da espectropolítica é a prática política sem conteúdo (Arte: Tess Johnson / Reproducao)

 

Em conversa com um cidadão que votou no candidato eleito para a presidência da República, perguntei se ele estava feliz com os resultados. Ele afirmou que não estava. Curiosa com a resposta, perguntei pelo sentido de sua infelicidade, quem sabe ele quisesse expor melhor seus próprios motivos e sua compreensão de política.

A resposta foi uma paradoxo espantoso. Segundo suas palavras, ele fez a escolha que fez por não entender nada de política. “Votei em fulano”, ele disse, “por que não entendo nada de política”. Perplexa, perguntei-lhe o que ele queria dizer com “não entender nada de política”, aspecto fundamental na maiêutica daquele momento. Ele respondeu que não acompanhava o que faziam os candidatos, que teria votado em Lula se ele não tivesse sido preso e pudesse governar, embora no primeiro turno tivesse votado no Cabo Daciolo, alguém que, segundo ele, infelizmente, não tinha chance.

Por um segundo acreditei que meu interlocutor estivesse sendo irônico e insisti para que me falasse mais sobre sua visão das coisas políticas. Infelizmente, o cidadão apenas repetiu o que tinha dito com um ar cansado. Ele não cultivava o hábito da leitura, não usava nenhuma fonte de informação, nem mesmo Facebook, sequer televisão, me explicou. No entanto, o mecanismo da prótese cognitiva do momento, o Whatsapp, ele conhecia muito bem. Perguntei-lhe o que pensava dos candidatos, ele insistiu em um clichê, a ideia pronta que não permite desenvolvimento: já era hora de mudar, o PT não dava mais. Eu lembrei a ele que o PT não estava no governo desde 2016. Ele mesmo disse: “Tá tudo pior, mas sem o PT o pior é melhor”. Eu não quis perguntar mais diante das contradições, preferi simplesmente ouvir. Espontaneamente, ele me falou de uma tristeza por ter que votar, “melhor seria não ter essa obrigação”, finalizou.

Lembrando do personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, aquela figura mergulhada em melancolia e impotência, eu segui pensando na desigualdade econômica, política e social forjada em séculos que segue solta e produz tanta alienação e ódio à política.

Espectropolítica

A eleição de tantos candidatos que em outros tempos causariam vergonha alheia em muitos de nós é sinal dos tempos pós-políticos em que vivemos.

Assim como Foucault definiu a política moderna como “biopolítica”, o cálculo que o poder faz sobre a vida, podemos definir a política atual, essa que se constrói sob condições digitais, de “virtual-política”, “digital-política” ou, considerando seu caráter tão impressionante quanto aterrador de “espectropolítica”. Há um cálculo sobre a vida digital que faz parte da política atual. Há tempos falei de uma “política vodu” inspirada na ideia da economia neoliberal, a “economia vodu”, vazia de conteúdo social, vazia de produção, voltada ao lucro pelo lucro.

Naquele artigo eu falava do esvaziamento da política que era fruto do esvaziamento da ética. A ética – não a moral, muito menos o moralismo que ainda é usado para iludir os inocentes – deveria ser sempre o conteúdo da política. A política espectral é vazia desse conteúdo, uma mera máscara da política. Já falei em muitos outros textos sobre essa diferença entre ética e moral. A ética como a reflexão sobre a moral, a moral sendo um conjunto de hábitos, costumes e regras. O moralismo seria a deturpação até mesmo da moral. Políticos de todo lugar fazem uso do moralismo para fins eleitoreiros, mas falemos disso em outro momento. Por enquanto, basta lembrar que os autoritarismo têm seu fundamento em uma lacuna ética essencial, aquela que impede o reconhecimento do outro. E já não falamos de ética há muito tempo…

Nesse momento, devemos voltar ao tema da espectralidade. De fato, criamos um novo campo no qual realizar uma estranha experiência política e toda a nossa análise antropológica, etnológica ou filosófica sobre política e sobre o todo das nossas relações humanas, em si mesmas políticas, deverá ser analisada à luz dessa nova dimensão.

A espectropolítica é a política reduzida à fantasmagoria. Uma política feita de aparições, de personagens bizarros, de cenas que em tudo se parecem com filmes de terror. Sua característica é o ambiente tóxico onde se é facilmente infeliz, do qual se sente medo e nojo. Característica da espectropolítica é a prática política sem conteúdo. Há os que construíram a espectropolítica justamente para se aproveitar dela à medida que ela garante o poder pelo poder. Há exemplos por todo lado: do deputado que “mamando” na coisa pública por quase 30 anos sem nada fazer pelo povo, sem participar do debate, sem defender o povo, sendo um agente da mistificação, elege-se presidente da República; assim como há o sujeito que vota estranhamente dizendo que não sabe nada de política. O primeiro é um agente das mais pérfidas práticas políticas, inclusive essa velha prática que envolve enganar o povo, o cinismo. Já o segundo seria um otário do primeiro. Ambos, no entanto, são parte de um sistema. O segundo, bem mais um cidadão perdido, desinformado e sem acesso ao debate, está à mercê de quem quiser se aproveitar dele. E esse “aproveitamento” faz parte do sistema em todo lugar e em qualquer tempo.

O que também espanta no cenário da espectropolítica é a prática política dos poderosos reduzida ao bullyng. Muito da prática intimidação, de ameaça até mesmo de morte e extermínio, de todo tipo de violência verbal que vemos nas falas de seus agentes (antes candidatos e agora ministros, deputados, governadores, senadores eleitos), muito das manifestações políticas, tem algo de uma bufonaria meio infantilizada. Alguns desses personagens parecem andar armados com revólveres de plástico, numa exposição que sempre pode remeter à velha e infantil “invidia penis”. As encenações atingem o grotesco.

Muita gente duvida que essas ameaças – que se confundiam com as “promessas” de campanha – venham a se realizar, como se sua função de perturbar mentalmente a população já não tivesse se realizado. A espectropolítica é uma espécie de pesadelo do qual será muito difícil de acordar. O esforço de hoje é novamente o da razão e da lucidez contra os programáticos delírios impostos à força às pessoas humilhadas por falta de compreensão, conhecimento e simples exercício da cidadania.


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(2) Comentários

  1. As tecnologias usadas pelo candidato da extrema direita foi tão sofisticada que nem nossa justiça soube lidar com tantas fake news. Acho que ou nossa justiça está muito atrasada tecnologicamente para poder investigar tais crimes virtuais, ou simplismente fez vista grossa e não quis investigar. Provavelmente o eleito pela mentira foi beneficiado por tecnologia norte-americana e outros que, pelo mercado, procuram eleger políticos favoráveis às privatizações e cortes em investimentos sociais

  2. José de Sousa Santos, discordo de você no que diz respeito ao suposto atraso da ‘justiça’ brasileira em identificar e punir os ilícitos virtuais. O que se nos apresenta, ao meu ver, é uma omissão condescendente e, em alguns casos, até um vergonhoso ativismo por parte do poder Judiciário que, ao contrário do Executivo e do Legislativo, não expurgou seus resquícios ditatoriais e não submeteu-se ao processo de redemocratização do país. No entanto, muito ironicamente, como os movimentos sociais e políticos tendem a ser cíclicos, o Judiciário, por não ter se redemocratizado, está perfeitamente sintonizado com o que virá.

    Márcia, o texto, como sempre, é irretocável.

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