Em tempos negros

Em tempos negros
O artista em 2003: seu trabalho exige uma reconfiguração “agora” e “pra sempre” (Foto: Vania Toledo/Acervo MUI.TA)

 

Nutro grande interesse por performatividades existenciais que deixam os tempos dançarem e irem longe-perto como o que voa por debaixo da terra. Itamar Assumpção são, para mim, tempos encontrados e dissidentes, contorcendo a estatura e a estrutura do “é”. A sua expressão são os tempos quebrados, isto é, aberturas ao que não se apresenta sem a presença do corpo. Parece tratar-se de criadores (Itamar e os tempos) que não cedem à abstração ou à falta. Não são os álbuns ou a ideia da existência propositiva desse artista que me interessam, mas a sua existência com finitude, saliva e surpresa; a inteligência do seu rosto. Os tempos dançam nas suas vísceras quando é ele quem dá passagem a Ataulfo Alves e nomeia esse acontecimento de “Pra sempre agora”. O ancestral se atualiza e ativa num nascimento que é continuidade e instante ocupado. Não importam nem o legado (no seu esteio patrimonial) nem o passado como objeto desbotado. “Agora”, como no palco, diante de uma orquídea ou vestindo óculos, é a possibilidade de o tempo ser uma experiência de libertação – sobretudo para um corpo negro. “Agora” é a erosão do cuidado ou do descuido, mas, também, a acentuação da filigrana na emissão da significação em timbre acurado; o mergulho arguto, ritmado pela perspectiva. “Agora” é quando os tempos embaralham as vozes que se vertem num corpo (e o avesso). É a tradução que recusa a equivalência. Ataulfo não está equidistante de Itamar como este, por sua vez, estaria de suas filhas. O artista afirma, com sua arte, que não chegou ainda – apesar de ser somente presença –; que, depois de tudo, o vazio anterior, o silêncio que resguarda a entrada do “sempre”. “Pra sempre” é a duração pontual do corpo demorado no som, debruçado na varanda do sonho, celebrado na invenção das partes — e note-se que sonho é quando a música perfura, quando as múltiplas coisas que existem se assumem na variação do ritmo ou no arranjo que revela não haver essência de coisa alguma. “Pra sempre” são as frequências graves dos baixos, cujas ondulações predizem uma ida ao infinito. Os baixos, conversando realizações, são o rum, entre os três atabaques, aplainando os montes de terra para a ventania do drible ir direto ao ponto. É verdade que Ataulfo, por Itamar, será o tempo vestindo-se para sair, a rigor, mas ciente de que é ainda isca de polícia; ciente de que ainda se está concedendo a chance de esculpir-se; ciente de que se fixar é asfixiar (muito menos do que a gravata, muito menos do que a elegância, muito menos do que o intelecto). O que é o “bom crioulo”, Itamar? É a estética da recusa. Quilombagem de base. Entendimento do “duplo”. Arguir, antes, na cabeceira da intimidade, contra as palavras do mundo dado. Sair do jogo. Esfaquear a consonância. Desmembrar a massa política. Saber qual é o lado da sua história. Não voltar, não voltar, não voltar… a não ser como Zé Pelintra.

A canção “Bom crioulo” re-habitada por Itamar é, no Brasil, desfazer o “bom” se vindo de quem aceita o Estado e o estado da arte. Que artista! Mexe com tudo isso, lança à trituração com violência e senso de rotação. Lança aos tubarões famintos e come os tubarões ao entregar-se à grandeza do mar.

Quando cria com Naná Vasconcelos, igualmente, dança tempos e dialoga com outro artista que não confunde ancestral com antepassado. O álbum, intitulado Isso vai dar repercussão, é agora o que sempre vai ser, assim como as ancestralidades que escurecem o próximo movimento. Itamar é alguém que contrapõe o nosso “cabelo duro” a ter “miolo mole”. Conversa com Paul Gilroy e Stuart Hall ao dizer-se afro-brasileiro puro — trama que basicamente compreende a diáspora negra atlanticamente molhada —, comentando sobre a difusão aculturada na coluna vertebral brasileira. Desdiz conversa e comentário negro-atlânticos ao falar, fora das paredes da discografia, que sua avó era uma “matriarca africana”. Itamar critica as raízes, assume-as, critica a brancura, vai em meio a ela, ouve o contínuo intervalar da umbigada no seu violão, ouve moda de viola nos recônditos do seu acento, e sabia/sabe que seu saboreio temporal é outro em relação a qualquer referência. Sabia/sabe que não (de)mora no samba, no reggae, no jazz, mas na encruza dos (im)possíveis; que vive, elástico, com Zé Pelintra – de quem se disse cavalo – nas dobras e soslaios; e que é filho de Xangô, fogo de algum dia ter estado no mundo e festejado a festa, a galera, o aviso, o sobrevoo. E a incorporação de Geraldo Filme por Itamar? O que estava implicado na ênfase na apropriação perversa da branquitude no que concerne às africanias no Brasil? O que Itamar não quis dizer, exibindo o filme de Geraldo? Que outra força pode ser trazida pela voz de Itamar, no imperativo, ao revelar um “Vai cuidar de sua vida”?

Com a banda Isca de Polícia no início dos anos 1980 (Foto: Acervo MUI.TA)

“Isso vai dar repercussão” é percutir novamente o porvir. Mas não está no futuro. Este é uma expectativa linear e debilitada como um extrato sem corpo do tempo. Os corpos pretos de Itamar Assumpção, de Clementina de Jesus e de Virgínia Rodrigues não são cavidades voltadas para o futuro ou para o passado. Não são, tampouco, tempo presente (enquanto a possibilidade de experiência entre o passado e o futuro), mas, insisto, ocupações do que vive. E viver quer dizer dançar mesmo, não concluir, saber, morrer, nascer noutra hora, desvendar, recolher, fazer parte de um segredo, somente dizer respeito ao físico e citerior, encantar-se na amplidão. Na versejadura itamarina: “O que existe é o mesmo ovo de sempre / Chocando o mesmo novo”. O porvir não é o futuro e nem é afrofuturista. O porvir é porque vem. É mais afropresente na sua dilatação multidimensional, multitemporal, multiterritorial, fazendo viver o que vive, morrendo contra a vontade e quando não tem mais jeito; contudo, ao mesmo tempo, não deixando morrer, povoando imagem, abismo, ancoragem, a materialidade dos sentidos e das filosofias em alto-relevo. A carne da vida dá-se toda quando se pensa na “Leonor” apresentada por Itamar. Quando se encontra “Inês” ou se repensa o lugar de um “Man” (e o que seja “Mulher segundo meu pai”) ou se ressignificam as “Milágrimas” e a “Dor elegante”, ou, por fim, enuncia-se uma “Próxima encarnação”, pela qual se regressa à metalinguagem das temporalidades. Não é propriamente numa vanguarda que penso ao encontrar as suas poéticas e parcerias diversas, mas na afirmação de um sorver livre das características. A vanguarda e parte de um terreno euro-ocidental que a ampara não podem julgar que contêm Itamar, deslocando-o, mais uma vez, da sua conexão presente, da sua articulação com o que está, complexamente, a passar; a sua performatividade não pode ser jogada para algum canto, ainda que cantado, sob a perspectiva anódina e pseudoelogiosa de que se trata de um gênio extemporâneo. Ninguém (ou nada) realmente relevante desponta fora do “seu” tempo, a partir do qual as sístoles e diástoles que cruzam e modulam espaço-tempos acontecem. Itamar tem e é tido pelo “seu” tempo, com as fissuras, transfigurações, esperas e constatações que dizem respeito a esse tempo, assim como sói ocorrer com as quebras rítmicas em muitas de suas canções e interpretações. Nos termos do artista, numa canção que se chama “Variações”, é dito que “quem quer fazer boa música” tem que “contar compasso quebrado”. A quebra, “prezadíssimos ouvintes”, está tanto no compasso como na contagem. É preciso contar quebrado, chegar quebrado à vida supostamente inteiriça, e, do mesmo modo, chegar com inteireza à vida quebrada, às suas pregas, à mandinga do hálito de cada trajeto-variação. Itamar, escuta-se, por exemplo, em “Tua boca”, um certo tipo de quebra temporal promovida pelo cromatismo dos já aqui mencionados baixos – nesse caso, operando como passos que avançam em direção ao ato, à cena aberta. Entretanto, o florescimento da criação – egresso das sinuosidades inescapáveis –, conforme anunciado em “Nega música”, não deve causar espanto (por chegar quando se menos espera). Que música é essa que continua, sobe alto e começa do zero? Que música é essa, Itamar, que sai da dessemelhança? Que roda gigante é essa, inoculada na invenção brasileira? É ali, no centro da ação criativa e a partir do “seu” tempo, ordinariamente, que Itamar veste a bata dos acontecimentos, o que, necessariamente, distancia-o de ser um marginal ou um maldito: eis outra forma de retirá-lo dos núcleos propositivos, tal como considerá-lo um fruto serôdio, e, assim, não precisar retorcer o próprio pensamento. Ele afirmava que o seu trabalho dá trabalho. Em larga medida, o seu trabalho exige uma reconfiguração “agora” e “pra sempre”, motivo pelo qual se prefere adiá-lo no tempo (projetando-o para o famigerado futuro) ou num lugar social, deixando-o no escaninho de algum território discursivo-performativo. É desse modo, com empenho, dedicação e vigarice, que se tem agido com as inteligências apresentadas por corporalidades negras.

É fulcral acessar a obra-Itamar neste instante, auscultar-lhe a batida das pálpebras poéticas, num fresco gole d’água, e retomar várias vezes a morada da sua voz; sublinhar a sua técnica, os seus estudos e laboratórios transformativos; adentrar os semantemas e debulhar as lâminas de vitalidade. É preciso gozar com Itamar, o que só pode ocorrer diante da presentificação da presença. Reporto-me à análise do pesquisador estadunidense Robert Farris Thompson ao pensar no jazz vindo de “jizz” (gozo ou gozar em inglês) e no “jizz” vindo do verbo em língua kikongo “dinza” (gozar). É preciso, na presença, ir fundo na alacridade, lembrada por Muniz Sodré – para onde as sendas latinas do étimo gozar conduzem, na medida em que este advém de “gaudere” (alegrar-se, desfrutar) –, a qual, com os portões abertos ao choro, ao ódio e ao brado que golpeia de morte, faz-se definitiva ética para se relacionar com a incidência dos tempos nos corpos atravessantes. Num sim, canta-se assim: “Não, tristeza não/ Corre anda rasteja/ Peleja sim coração/ Em busca da beleza”.

 

Tiganá Santana, artista, tradutor e professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos (UFBA) e do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Estudos Brasileiros (USP). Doutor em Letras pela USP.


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